domingo, 13 de fevereiro de 2011

SUTILEZA


                        Lá estava Zílian em seu magnânimo escritório! O último andar do mais alto prédio da mais agitada metrópole...
As janelas de vidro fumê... e, após as mesmas, o infernal mundo inferior...
           Recostado à janela, Zílian contemplava a correnteza humana que se arrastava pelas ruas abaixo de seu poderoso escritório. Admirava tudo aquilo, absorto. Riu com amargura... O fato era que odiava estar onde estava, assim como aquelas pessoas odiavam estar onde estavam. E aquelas pessoas, com ódio, deviam pensar “ah, como eu queria estar num escritório destes”. A vida é isso mesmo: ironia morta!
            Ironia... O caos urbano... Burburinho... Buzinas... Engarrafamento de emoções: tristezas e alegrias misturadas... Tristezas...
                        Quem poderia dizer que Zílian era um homem triste? Quem?...
                        Uma lágrima caiu-lhe dos olhos... O olhar fixado nas ruas e pessoas, lá em baixo... Nas calçadas...
                        Então Zílian viu. Ninguém estava se dando conta, mas ele a percebeu! Mesmo de tão longe, pôde enxergá-la. Um alento em meio ao caos... uma dádiva em meio a danação...
            Mas... Por Deus...! Precisava fazer alguma coisa ou ela seria destruída, pisoteada pelo individualismo daqueles transeuntes! Ela parecia lhe pedir socorro... Era tão linda, tão linda!... Fora abandonada, não restava dúvidas! Por quem? Quem tivera coragem de deixar ao relento uma coisinha tão graciosa?!
                        Determinado, Zílian ergueu-se da poltrona. – O tédio havia sumido de seu semblante –  Urgia que tomasse alguma providência. Desceria até a rua. Isso! Salvaria aquela pobre coitada!
                        Partiu, assim, de seu auto claustro!... Foi-se...
                        Entretanto bastou que abandonasse o gabinete para que, na ante-sala, a secretária se lançasse em seu encalço...
- Ah,  Dr. Zílian, que bom que saiu... Eu estava precisando lhe falar, mas como o senhor deu ordens para não ser importunado...
                        Ele não parou, não deu a menor atenção a outra. Continuou seguindo, firme, queixo erguido, rumo ao elevador.
                        E a secretária no seu rastro...
- Sabe o que é? A firma do contrato acabou de telefonar... Eles querem uma resposta urgente...! Aliás, parabéns, Dr. Zílian! É um contrato milionário este!...
                        O executivo andando...
- Dr. Zílian?... Doutor?!... O que... o que faço... Eles estão aguardando...
                        Um tilintar eletrônico. Era o elevador que começava a fechar as portas. Iria descer...
                        Zílian gritou para o ascensorista:
- Espere!...
                        O jovem, lá dentro, estremeceu e tratou de obedecer.
                        E a secretária, pasmada com a insana indiferença do patrão:
- Doutor?!... Telefono dizendo que está tudo certo?...
                        Zílian embrenhou-se no elevador e ordenou ao ascensorista:
- Vamos, vamos! Desça!
                        Catatônica, a secretária ficou do outro lado das portas a se cerrarem.
                        15o andar... Uma vida... 14o... Outra existência... 13o...
                        Zílian já começava a sentir ódio daquele marcador. Parecia a praga de uma lesma!
                        A pobrezinha... abandonada na calçada! E se alguém a machucasse, se lhe fizessem mal?
                        Afrouxou o nó da gravata e bufou.
                        O ascensorista resolveu ser simpático:
- Quanto calor, não é, doutor?
                        Zílian fitou-o, perplexo. Um ser humano decididamente não sabe interpretar outro. Calor?! Aquele afrouxar de gravata dizia coisas tão mais pungentes: “A angústia está me corroendo!”... “Esta vida me sufoca!”... “A maldita mesmice do quotidiano me estrangula!”...  Qual o que! As pessoas sempre preferem acreditar no mais banal!... Calor! Por não se achar um doutrinador de mentes, preferiu continuar mudo!
                        Súbito, escuridão total e o som de algo saindo de sua rotação...
                        O elevador enguiçara!
- Desgraça! – Explodiu o executivo.
                        O ascensorista entrou em pânico:
- Ai, doutor, desculpa!... Quero dizer, não é culpa minha – Seu emprego, seu emprego! O chefe se enfezara! – Eu só cuido de fazer essa máquina subir e descer... Ai, meu Deus!...
                        E Zílian só conseguia pensar na pobrezinha que fora abandonada sobre a calçada...
- Ai, doutor, o que a gente vai fazer ... Socorro! – O jovem começou a berrar. A verdade, terrível e ridícula, era que o ascensorista tinha pavor de ficar preso em elevadores – Socorro... Alguém ajude, alguém acuda!
                        O ir e vir de pessoas, refletiu Zílian... Naquele instante, quantos deviam estar passando pelos andares acima e abaixo daquela geringonça? Quantos? Mas ninguém estava ouvindo os berros do ascensorista!... Um ser humano jamais ouve os apelos de outro. Não se escuta gritos, o que dizer de sussurros d’alma?!
                        Com certeza, o único que atinaria para o desespero do jovem, ao seu lado, seria o técnico dos elevadores, afinal fora treinado para isso... Só para isso!
                        Dito e feito:
- Calma vocês aí! – Uma voz aborrecida – Eu sou o técnico e já vou resolver o problema!
                        “Calma vocês aí?!” Zílian riu consigo mesmo. O ser humano adora generalizar um vexame!
                        A pobrezinha abandonada sobre a calçada!...
                        “Trec” de cá, “trec” de lá... Solavancos... E as portas se abriram...
                        Zílian saiu, esbaforido...
                        O técnico:
- Doutor? Por que não me avisaram que era o senhor que estava aí dentro?
                        O executivo, sem parar de andar, respondeu mentalmente: “Porque não era só eu que estava lá dentro... E, caso não fosse eu, o que teria acontecido? O socorro chegaria um pouquinho mais tarde?
                        A escada... Restava-lhe a escada. Aquele ainda era o nono andar!
                        Vitimado pela ânsia, Zílian se pôs a descer os degraus qual um adolescente: ligeiro, inconseqüente, alheio aos riscos de uma queda...
                        Oitavo andar.
                        Sétimo andar.
                        Sexto.
                        Quinto...
                        Já pulava os degraus de dois em dois... Um adolescente indisciplinado... Livre... Louco... Autêntico...
                        Precisava ir ajudar aquela coisinha delicada. Como alguém podia tê-la abandonado?
                        Quarto andar.
                        Terceiro.
                        Segundo.
                        Um adolescente, pulando os degraus de três em três... Ah, como era bom poder fugir das convenções... Fechou os olhos... Três em três degraus... Abriu os braços...
                        A queda!
                        Zílian rolou pelos últimos lanços da escadaria. Despencou feito um peso morto. Ao fim da patética seqüência de cambalhotas, sua cabeça se chocou contra uma parede qualquer. Um filete de sangue desceu-lhe pela testa. Carmim efervescente.
                        Uma faxineira correu para acudir o pobre homem.
 - Nossa Senhora!... Dr. Zílian!... 
                        O executivo tateou o chão... a parede cruel... e se pôs de cócoras.
                        Riu de si mesmo...
                        Conjeturou: é bom fazer pouco de si próprio, uma vez e outra. Na maioria das circunstâncias, somente aprendemos a nos valorizar quando nos desvalorizamos.
                        A mulher apalpava-o qual uma louca: “ O senhor está bem? O senhor está bem?
                        Ergueu o queixo para esquadrinhá-la – O sangue caiu-lhe rosto afora – Ele, o patrão, agachado. Ela, a empregada, erguida. Seres humanos não sabem disfarçar seus mais recônditos sentimentos. Ele agachado, ela empertigada... Havia prazer nos olhos daquela mulher!
                        Riu.
                        Levantou-se, por fim, cheio de dignidade. Disse que estava tudo bem e saiu correndo de novo.
                        Abandonou o vão das escadas – Estava no térreo, afinal – Jogou-se em desatinada carreira pelo hall do prédio. Desfez, por completo, o nó da gravata... Que pensassem que era calor, que maldissessem que era doidice! Atravessava o hall correndo.
                        Um mar de miseráveis elegantemente vestidos. Esbarrava neles todos. Pelo ar, uma sucessão de mecânicos : “Oh, Dr. Zílian, desculpe-me!... Tudo bem com o senhor?”. Falsos! Todos o odiavam. Em essência, os seres humanos vivem para sentir amor pelo ódio que sempre nutrem uns pelos outros...
                        Retirou-se do prédio. A rua. A rua... Os demônios do Inferno de Dante se arrastavam por aquelas calçadas...
                        E a doce coisinha que resolvera salvar, onde estava? Ah, sim... Mais a frente! Era mais a frente!
                        Abriu passagem por entre os demônios – digo: pedestres – com desavergonhada agressividade. Empurrava-os, acotovelava-os. Tinha de salvar aquela pobre coitada...!
                        Imbecil...!”, “Cretino...!”, “Seu marginal...!” Ali, ninguém sabia quem era o Dr. Zílian...
                        Correu...
                        O mar de gente... Mormaço... Buzinas...
                        Onde ela estava?!...
                        Onde?! Ora, a sutileza é a coisa mais evidente que existe!...
                        Zílian estagnou-se... Suspirou, feliz, ao se deparar com a responsável por sua “Jornada rumo a Salvação”. Ela continuava no exato lugar que vira, lá de cima! Abaixou-se diante da pobrezinha... Tomou-a entre as mãos com extremo cuidado. Levou-a às narinas e inspirou seu divino perfume...
                        Como alguém tivera coragem de abandonar uma rosa sobre aquela calçada imunda?! Como...?!

domingo, 6 de fevereiro de 2011

CONCHAVO DE UM AMOR SÓ TEU

Enquanto vivia a angústia de esperar o elevador, Mateus não parava de repetir mentalmente que detestava aquele lugar. Odiava hospitais. Estava ali porque fora inevitável. Um velho amigo doente, sabe-se como é... Abominava hospitais. O excesso de brancura, a massacrante volúpia do éter. Para piorar, aquele elevador sonolento. Espera desgraçada.
            Resolveu dar à mente outros pensares. Enfiou a mão num dos bolsos e dali tirou uma caixinha. Abriu-a. Sorriu. O anel que comprara para dar a Cíntia. O anel de noivado.
             Maldito elevador que não vinha...
            Apoderou-se da aliança. Brincou com ela por entre o polegar e o dedo indicador. A jóia fluiu daqui, de lá, exibiu-se, cintilou e subitamente resolveu escapulir. Foi tudo rápido demais. O anel tocou o chão e de pronto saiu rolando, correu, debandou. Encontrando entreaberta a porta de um quarto em frente, perdeu-se lá por dentro.
            Apartamento 634. Mateus fitou a porta mal fechada. Soltou um palavrão entredentes. Olhada para um lado do corredor, depois para o outro. Não havia enfermeiros por perto. Tomou coragem. Dirigiu-se ao quarto. Afastou um pouco mais a porta, esquadrinhou o interior do recinto. Somente a luz de um abajur. O resto: um tudo mergulhado na penumbra. Uma cama, uma velha mulher desacordada, soro atado a seu pulso...
            A porcaria do anel devia ter ido parar debaixo da cama.
            Mateus entrou. Passos leves. Cuidado. Era preciso muito cuidado. Passos leves. Agachou-se junto ao leito. Penumbra. Infernal penumbra. Somente a luz do abajur. Tateou o chão abaixo do leito... Ufa!... Aleluia!... Lá estava sua querida aliança!
            Então, um sussurro inesperado:
- Por que não me disseste que virias?...
            Mateus ergueu-se num pulo.
A velha senhora acordara. E ela prosseguiu:
- Ainda bem que estás aqui!... – lágrimas num olhar espantado, mas exultante – Deus ouviu minhas preces!...
            Atrapalhado, constrangido, gago, Mateus retorquiu:
- Não, não!... A senhora deve estar me confundindo...
            A outra sorriu. Um filete de choro acariciou-lhe as rugas.
- Eu jamais te confundiria com ninguém, meu querido!
- Decididamente a senhora...
- Escute!... Vieste para me ouvir admitir, não foi isto?... Pois bem, eu digo... Digo, digo e digo: eu menti!...
- Senhora, é que...
- Menti, meu querido... Durante todos estes anos, tenho sofrido tanto!... Cinqüenta anos!... Meu Deus, cinqüenta anos!... Naquele dia, naquela tarde... Eu menti!... Tive medo... Eu era tão jovem!... Nós éramos tão jovens... Mas cinqüenta anos se passaram!...
- Não!... Perceba... Está havendo um grande...
- Eu disse que não te amava!... Cheguei a jurar!... Menti... E tive uma vida inteira para me arrepender!...
            Mateus esmoreceu. O coração aconselhou: “Desarme-se. Ouça o que esta velha dama tem a falar”. Decidiu atender. Concordou em deixar para depois o afã de ir embora.
            A voz da enferma era morna, quebradiça e, ainda assim, tão intensa, tão penetrante:
- Eu cheguei a jurar que não te amava... Agora, eu juro a verdade... – lágrimas num olhar enternecido, doce, pungente – Minha alma fez conchavo com um amor que foi só teu!... Minha alma...  Minha alma jamais se encantou com outra música que não este amor!...
            A penumbra e Mateus ali parado, envolvido, emocionado. Lágrimas num olhar aturdido.
- Não houve paz em nenhum sorriso que eu tenha dado sem ti... Eu juro!... Na verdade, em mim nunca houve sorrisos sem ti... Posso ter fingido, disfarçado... O fato é que o último sorriso sincero que dei foi em resposta ao último sorriso apaixonado que me deste!... Eu menti naquela tarde... Foste embora e nunca mais te vi!... Se voltas agora, é para que eu te jure: minha alma fez conchavo com um amor que foi só teu!...
            Sem entender o que estava fazendo, Mateus aproximou-se do leito. Ajoelhando-se, tomou a mão da velha dama para si.
            Lágrimas sobre dois olhares entrelaçados. Estranha cumplicidade.
- Se estás de volta... – ela arfou – preciso ouvir que me perdoas...
            Mateus também arfou. Um falar trêmulo:
- Eu...
- Por favor... perdoe-me!...
            Um riso suave nos lábios de Mateus.
- É claro que eu a perdôo...
- Jure!...
- Eu juro!... Com tudo que há de certo em mim... Por tudo que me traga paz!... Juro!... – lágrimas sobre um sorriso suave – Minha alma também fez conchavo com um amor que foi só teu!
            A penumbra. A luz do abajur. Uma dor no peito. Um gosto de mel na língua. Movido sabe-se lá porque, Mateus acariciou o rosto da velha dama e, com extremo carinho, beijou-lhe os lábios demoradamente.
            No final, a enferma recostou-se nos travesseiros, apaziguada. Virou o rosto para um lado e adormeceu.
            Mateus ergueu-se de súbito. O que, diabos, fizera? Por que ouvira toda aquela história? O que, diabos, fizera? Olhou para um lado, para o outro. Penumbra. O anel que daria a Cíntia ainda em sua mão. Olhou para um lado, para o outro. Abandonou o quarto, afoito, confuso. Um nó na garganta.
            O quarto... A tênue luz do abajur...
            Outra vez sozinha, sem abrir os olhos, a velha dama, enlevada, murmurou:
- Meu querido Mateus... Meu amado Mateus...
            Meia hora depois, a enfermeira de plantão lastimaria descobrir que dona Cíntia, a doce paciente do 634, havia falecido com um estranho sorriso feliz nos lábios.