terça-feira, 20 de dezembro de 2011

FAMÍLIA S/A

Carlos Correia Santos

Pegou a lista telefônica e começou a procurar com avidez. Folhava o catálogo com o frenesi dos que não sabem exatamente por onde começar. Após uma e outra busca, partiu no rumo da letra F: “fachadas”, “faculdades”, “faixas”... Precisava achar. A modernidade dos tempos cria empresas para qualquer coisa. Não lhe restava dúvidas de que acharia quem oferecesse o que estava procurando. Não se aluga tudo? Roupa, carro, sexo? Havia de achar alguma firma que lhe alugasse uma...

Família...

Era 31 de dezembro, 11h30 da noite. Já estava com tudo pronto. Casa arrumada, ceia farta posta à mesa. Tivera trabalho, mas conseguira comprar tudo do bom e do melhor. Bacalhau de primeira, preparado com azeite importado. Humm! Cheiro maravilhoso. Champanhe Moët Chandon. Custara uma fortuna. Não dera a mínima para o preço. Dinheiro gasta-se, perde-se, nada é. Com a sobremesa tivera especial cuidado. Adorava doces. Framboesas flambadas em vinho tinto, guarnecidas com creme de nata. Mas não qualquer creme de nata. Creme de nata mesmo!... Obviamente, não esquecera a romã. Sorte é tudo na vida. E a decoração? Espalhara velas e incensos por todo lugar. A casa estava linda...

Tanta fartura, tanta beleza. Só lhe faltava aquele detalhe: uma família. Algazarra de crianças correndo por todo canto. Fulaninho chorando porque implicara com sicraninho. Todos rindo com o modo com que o caçula dançava aquela música da moda. “Parece um adulto, vejam só!”. Primos, tantos primos. Alguns muito queridos – aqueles que a gente passa o ano inteiro querendo rever -, outros insuportáveis, cínicos. Cada um – e todos – peças indispensáveis. Primos e suas esposas, no fundo entediadas por não estarem com suas reais famílias. Tios, tias. Muitos deles. Gordos, magros, baixos, altos, contidos, afetados. Ah... Avós e avôs... Amorosos como a origem de tudo. Infalíveis como o destino de toda jornada. E, claro, uma doce mãe... Meiguice, placenta e útero.

O bacalhau esfriando, a sobremesa ficando quente. Tanta fartura, tanta beleza e não havia ninguém com quem repartir o champanhe, a romã...

Devia haver na lista telefônica algum serviço de aluguel de família... Bastava procurar. Quem sabe não achava? Se encontrasse, pediria uma que viesse com mais avós do que primos. Já pensou? Quatro avós e quatro avôs! Que ótimo!

Quando fosse fazer a encomenda, precisava frisar algo: um pai... Não podia faltar um bom pai...

Já manuseava a lista com angústia e cansaço. Procurou em “Serviços Especiais”, “Acessórios”, “Artigos de Necessidade Básica”. Procurou até em “Empréstimos”. E nada. Acabou fechando a publicação, acabou deixando-a para lá...

Olhou para a farta ceia sobre a mesa, correu a vista pela decoração. No final, procurou consolar-se desejando a si mesmo um Feliz Ano Novo. Não ficaria triste. Não desistiria de ter esperanças...

Ano que vem encontraria uma família.

Tinha certeza.

Tinha toda a certeza do mundo.

Ano que vem, a lista telefônica estaria mais completa...

APLAUSOS PARA O ESPETÁCULO DO TROPEÇO



Chegue-se. Tome seu lugar nessa vã e imensa casa de espetáculos que sãos os tempos atuais. Valha-se de seus doces porque o açúcar sempre atenua a dor. Acomode-se plenamente a contento e prepare-se para aplaudir, pois o espetáculo vai começar.

Espetáculo?

Qual?

O tropeço.

Sim, o tropeço. Eis o grande espetáculo que tanto ganha ovações, aplausos e fãs nos dias de hoje. O tropeço.

Prostram-se as massas diante de seus famigerados twitters e facebooks para ver quem caiu, quem desabou, quem ruir. E assim se ri. O que se quer é rir. Gritar aos ventos todos dessa nau insanidade chamada internet. Gritar: aquele imbecil ali tropeçou. Caiamos como abutres sobre ele. Sim, façamos do clique bico de corvo para furar a carne daquela calma, afligir aquela alma. Lancemos o mouse sobre aquele que tropeçou e, qual ratos a despedaçar lixo (Ave, Chico Buarque), espalhemos tristeza e crueldade.

Em pensar que houve um tempo no qual compartilhar era apenas etimologia: partilhar com. Dividir o que de bom, o que de bem. Agora... Num compartilhar, compraz-se a infâmia. Compra-se intolerância. Vende-se a dignidade. Acha-se o pouco caso. Perde-se a paz de espírito.

Na plateia, o ávido espectador do tropeço, quando não encontra, caça. O fantoche da sanha geral, que baila sobre o fio da navalha diante da turba coberta pela burca do anonimato, tem que se estatelar, tem que se esborrachar. Ah, ele não fará seu número? Pois a turba o leva à lona. Assim, feito perdigueiros das bordas do apocalipse, os espectadores do tropeço dedicam-se a criar dramaturgias que derrubem.

E, nos meios dias, que se retuite a canalhice. Vivas. Milhões de vivas ao RT da bestialidade.

No entanto...

Tão no entanto...

Dos saltos ninguém fala. Para os saltos aplausos tão poucos... Não interessa festejar o que põe para frente. Aos acorrentados à mediocridade, pouco interessa celebrar o ir adiante.

E segue, desta feita, em cartaz o show do tropeço. O irônico é que as plateias se esquecem de algo divinamente poético. O espetáculo da vida é democrático. Você está aí nessa fétida plateia aplaudindo quem cai? Caindo na gargalhada? Aplausos para você. Amanhã o papel de protagonista, bebê, certamente há de ser seu.