segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

FICA AÍ, ERNESTO...


            A coisa começou mesmo com o cheiro de vela. Parafina derretida. Fragrância quente, incômoda.
            Então, a inconsciência fez pensar em sonho. Devia estar sonhando com um aniversário! Era excessivo o cheiro de vela. Mas qual aniversário? De quem? Quando? Onde? Parabéns... E o parabéns pra você?
            Peraí! Não tinha parabéns, não! Tinha era choro! Aniversário com gente chorando? Que sonho esquisito!
            Soluços, grunhidinhos, um tal de “Ai, ai, meu Deus! Como isso aconteceu? Que coisa horrível...”
            Horrível, na verdade, era esse sonho. Só podia ser um pesadelo, isso sim! Aniversário com gente aos prantos, um festival de fedor de vela e...
            Epa! Calma lá!... Tinha outro cheiro rolando. Tinha, sim. Era cheiro de... cheiro de... Flor! Era cheiro de flor!
            Seria algum aniversário de quinze anos? E aquele chororô podia bem ser a família desesperada com as dívidas que o festório ia trazer... Hihihi...
            Não, mas... Aquele cheiro era de... De cravo! Cravo de defunto!
            Vela, cheiro de cravo de defunto... Arre, quer saber? Ernesto se cansou daquele sonho ridículo! Enviou a ordem às pálpebras: abrir os olhos. Cansara desse negócio de dormir. Queria mais era abrir os olhos e se levantar. Já deviam ser umas sete horas da manhã! Urgia pular da cama e se preparar para rumar ao trabalho – ahrr, empreguinho de quinta!...
            Mas a vista continuou cerrada.
            Vambora, pálpebras amiguinhas! Levantar! Abrir o enxergador!
            Nada.
            A ordem mental de novo: abrir a porcaria das pálpebras e acordar!
            Bulhufas!
            Bem, meus caros amigos, agora é que começamos de fato esse conto!
            Ernesto do Canto Sereno – que nomezinho, einh? – Enfim, Ernesto do Canto Sereno que pensava estar dormindo e sonhando com um estranho aniversário, estava acordado desde que sentira o cheiro de velas.
            “O quê?! Como assim?”
            Sim, é isso mesmo, Ernesto. Tu estas acordado, amigo. Não estás dormindo, não.
            “Que palhaçada é essa, meu chapa? Como é que eu tô acordado, se eu não consigo sequer abrir os olhos?”
            Pois é, camarada, aí é que está o barato dessa história. Tu achas que ainda estás na tua caminha? Na mesma caminha em que te deitaste na noite passada? Olha o dedinho, olha. Ah, não podes olhar, né? Bem, tu não estas na tua cama nem no teu quarto e muito menos na tua casa. Quer saber qual é? Tua mulher, a Cinára, foi te cutucar hoje de manhã e descobriu que estavas duro – não no sentido que imaginas –, tu estavas inerte, frio, frio... todo gelado. Foi ver se respiravas e não sentiu nada. Surpresa, compadre! Tu não estás em nenhum aniversário, não! Estás dentro de um caixão, malandro! Estás no teu velório! Te mete!... Entendeu agora o negócio do choro, o fedor de vela, o cheiro de cravo?
            “Ê, cretino, que merda de história é essa? Tu és doido, é? Bora acabar com essa idiotice! Eu quero abrir a droga do olho!”
            Ih, não desconta em mim, não. Eu sou apenas o narrador desse tal de conto de terror, amigo. Por mim eu não estava nem aqui. Não tenho nada a ver com nada!
            “Conto de terror? Que babaquice é essa, cara?”
            Sim, conto de terror. Essa parada aqui é um conto de terror. E tu és o protagonista, olha lá! Só estas numa posição meio complicada, né? Todo empalitozado, chafurdado de flor, dentro de um caixão, com todo mundo pensando que estás morto!
            “Vem cá, eu tô morto ou não tô?”
            Esse é que é o lance legal, companheiro! Estás vivinho da silva!
“Um instante aí, um instante aí. Se isso aqui é um conto de terror, então tu és o personagem de algum espírito ou o diabo que o valha?”
Olha o respeito! Não tem nada a ver. Isso aqui é literatura. Eu sou um mero narrador. A tua história precisava ser contada por alguma voz.
“E que raios eu tenho, afinal, bicho?”
Catalepsia. Todo mundo pensa que tu bateste as botas. Estamos no meio do teu velório. E, olha, até que veio um bocado de gente. Não teve expediente na repartição, a galera toda compareceu... Até a Lara Lídia. Gostosinha ela, einh! Aquela penca de...
“Escuta lá, cara, pelo amor de Deus! Se eu tô no meu velório, se todo mundo pensa que eu tô morto, quer dizer que... Quer dizer que vão me enterrar vivo!”.
Bingo! Esse é o grande mote das nossas mal traçadas linhas. Vais ser enterrado precisamente daqui a meia hora.
“Puta merda! Jesus Cristo!... Faz alguma coisa, cara, pelo amor de Deus!”
Meu chapa, eu já te disse que eu sou apenas o narrador. Narrador oculllllto. Meio que a voz da psiquê no lance. Chique, né? Vai desculpando aí, mas não dá pra fazer nada, não.
“Ô, seu filho da mãe! Será que não deu pra entender? ELES VÃO ME ENTERRAR VIVO!!!! Tu tens que dar um jeito de fazer esse povo saber que eu não tô morto”.
E tirar o prazer do leitor? Se o cara começou a ler essa droga desse conto e chegou até essa página, é porque o sujeito é sádico e quer saber onde isso vai parar! E por falar em filho da mãe, a tua vem se aproximando do caixão. Fica caladinho que a gente precisa saber o que a velha vai te falar.
“Caladinho, uma pinóia! Mãe! Mãe!... Sou eu, mãezinha! Eu tô vivo. Pelo amor do Santo Cristo, me tira daqui!... Ô, minha santa mãezinha, sou eu, o Ernesto! Sou eu, o seu...”
- Filho da puta! – Disparou Dona Xavier, a progenitora do suposto defunto. E ela soltou a pérola baixinho, fazendo a cena pra ninguém perceber. Dando uma de que estava arrasada. No que levava o lenço aos olhos dos quais não saía uma lágrima verdadeira, continuou por entre dentes: – Finalmente eu tô te vendo onde tu mereces estar, seu safado!
            “Mãezinha? Que é isso, mãezinha? Sou eu, o seu primogênito, o...”
- O filho que mais me desprezou na vida – Prosseguia a anciã, pensando conversar com um morto – Eu doente, doente... Puro reumatismo, pura artrite! Fui te pedir um dinheiro pouco pra comprar uns remédios e o que tu me disseste? Gargalhando que nem um filho da puta: “Vai correr na praça, velha, que isso é ferrugem. Dá uma carreira por aí que num instante isso passa!”
            “Mas foi brincadeira, mãe! Poxa vida!”
- Tu não sabes as dores na alma que tu já me causaste! Quantas vezes eu não pedi: ah, Senhor, me dê a graça de ir só depois desse cretino. Me dê o prazer de enterrar esse...
            “Sim, sim. Filho da senhora, né?”
            Que é isso, rapaz? Respeita tua mãe! As mães são santas!
            “Mas tu não estás ouvindo o que ela tá me dizendo? Eu queria era poder ver a cara dela. Fingindo pro resto do povo que tá toda dolorida, se despedindo de mim na borda do meu caixão e fica me acusando de...”
            Do que tu sempre foste com ela. Um cretino. Olha só, lá vai a pobre coitada se arrastando pro conto da sala. Vá, Dona Xavier, vá. Ela está arrasada, sim. Arrasada por uma vida inteira em que a massacraste.
            “Eu..?”
            Sim! Que belo excremento de filho tu foste. Depois que teu pai morreu, mataste tua mãe dentro de ti e mataste ela em vida. Só patada, só descaso. Quando te casaste, então...! O ar que tu respiravas passou a ser a Cinára. Cada traque teu era por amor a Cinára. Por amor a Cinára e ao menino de vocês. Pra tua mãe, nem as sobras!...
            “Pô, cara, mas ela tinha o Luizinho...”
            O Luizinho? Hum, o Luizinho nunca teve nem a ele mesmo!
            “E por que, já?...”
            Ernesto! Pro Luizinho a vida toda só houve uma coisa: o idolatrado irmão mais velho! Tu, malandro. Tu és a única coisa que, obsessivamente, faz sentido na vida do pobre... E por falar no teu irmãozinho, é ele que tá se aproximando. Cara, eu espero que tu estejas preparado...
            “Preparado pra que? Ei!...Preparado pra que?”
- Como é que vai ser agora, Ernesto?
            “Luizinho? Maninho, escuta: eu tô vivo! Escuta bem: eu não tô morto, não!...”
- É como se eu estivesse morto também...
            “Não, não! Presta a atenção: eu tô vivo! VIVO!... Não deixa me enterrarem! Eu tô vivo!”
- Minha vontade era fazer um escândalo aqui, rasgar tudo. Gritar pra me enterrarem contigo!
            “NÃO!!!...”
- Eu não vou ser mais de nenhum outro.
            “O que? Luizinho, eu...”
- Desde quando eu era pequeno, lembra? Desde aquela vez eu jurei: eu não vou ser mais de nenhum outro... Só dele, só do meu irmão.
            “Luiz... Cala essa boca, Luiz! Quando eu sair daqui, juro que vou...”
- Estás me ouvindo? Estás ouvindo o meu cochicho no teu ouvido?...
            “Cala essa boca, moleque!”
- O meu segredo, meu irmão... O meu amor...
            “Cala essa boca imunda!”
E, sem que ninguém no velório percebesse, Luizinho selou sua despedida do irmão morto com um doce beijo em seus lábios frios.
É...
Bem, agora que eu já fiz o papel de narrador clássico, deixa eu te falar uma coisa: é nisso que dá brincar muito com os irmãozinhos mais novos. Fala aí! Hihihihi...
Ei, Ernesto! E então? Não dizes nada?
“Me tira daqui por favor”
É ruim demais remexer em certos defuntos, né não?
“Por clemência, meu amigo. Pára com isso, me tira daqui!”
Eu não sou teu amigo porra nenhuma! Ninguém é teu amigo! NINGUÉM!
“Cinára!... Eu quero a minha esposa!...”
Tu sempre estiveste morto, meu chapa! Sempre! Tua existência toda foi um enorme caixão!
“Cinára!!!... Cinára!!!”
Dia a dia se enterrando vivo, agora fica se borrando todo. Seja homem miserável! Seja a porcaria de homem que nunca foste!
“Cinára, Cinára...”
Agora tu choras, né? Mas choras por dentro e ninguém pode ver. Ninguém que está aqui te velando pode ver. Eles fingem chorar. Todos eles estão doidos pra te enterrar porque todos, todos te odeiam! Todos! Até a Lara Lídia! Tu pensas que ela sentia algum prazer naqueles banheiros da repartição? Ela só queria ser promovida, como vai ser agora que acham que finalmente estás morto. Se pudesses ver... se pudesses ver... Há um riso iluminado no canto dos lábios dela...
Ninguém te ama!
“É mentira!... É mentira. A Cinára me ama, seu bastardo”.
Bastardo? Eu, esse mero narrador?... Não, meu querido. Eu não sou o filho que criaste pensando que era teu.
“O que?”
- Calma, Alfredo. Aqui, não!
            “Cinára? Cinára, és tu?... Alfredo? O primo Alfredo tá ai também? Vocês dois, por piedade, notem bem... Ó! Eu tô vivo”
- Pára, Alfredo! – Continuava a viuvinha defronte ao caixão, lutando contra os dedos que insistiam em achar suas ancas – Pelo amor de Santo Cristo! E se alguém vê?
            E, Alfredo, também defronte ao caixão do miserável Ernesto:
- Ora, que se danem! Foram dez anos de espera! Chegou o dia com que a gente tanto sonhou! A gente tá livre desse imbecil, meu amor!
            “Cinára... Alfredo...”
            A viuvinha, os lábios tremendo num riso nervoso, disfarçadíssimo:
- Puta merda! Em pensar que esse estrupício tinha uma saúde de touro. Só pode ter sido uma benção dos céus que a gente recebeu, Alfredo. Eu, tu e o nosso filho.
- Uma benção dos Céus, é? Tem certeza que não tem dedo teu nessa morte súbita do cornão?
- Não foi uma nem duas vezes que estive para botar o meu dedo nisso. Mas, graças a Virgem, ele resolveu colaborar. Vai ver que se intoxicou com tanto chifre.
            Se não estivessem aqui, Ernesto, no teu velório, eles estariam gargalhando. Rindo sem se conter, como quando estão num motel, na casa dele, na tua cama...
            “Já basta”
            Sentiste esse tranco, Ernesto? Esse travar? Foi a tampa do caixão. Do teu caixão. Eles estão lacrando a tua urna. É!... Repara. Sentiste um sutil barulho de respingares? É o padre, Ernesto, aspergindo o teu féretro.
            Agora teu peso morto dentro do caixão é sustentado por seis homens. Teu apaixonado irmão, o teu querido primo Alfredo, teu patrão – aliviado porque não vai mais ver tua cara – e outros três desconhecidos. Sim, desconhecidos... Sabe por que? Porque ninguém mais quis se dar ao trabalho de segurar as alças da tua morte. Nenhum outro primo, nenhum vizinho, nenhum colega...
            O caminho para o cemitério. Sentes? Tu balanças ai dentro. Te bates. Feres a testa contra o tampo do teu paletó de madeira. É tão ruim não poder gritar, não poder fazer algo que te impeça de ser enterrado vivo, não é? Tu vais ser enterrado vivo!
            Esse baque foi porque soltaram teu caixão sobre a estrutura de cimento da tua tumba, a tua cova, a tua última morada!
            Os coveiros já passam as alças por baixo do teu esquife. Eles vão começar a te descer na sepultura. Teu caixão já está descendo a sepultura...
            Descendo, descendo...
            Presta atenção, Ernesto...
            “Em que?”
            Presta atenção...
            “Diz em que, narrador maldito!”
            Tenta abrir teus olhos agora!
            E Ernesto os abriu, por fim.
Breu, a escuridão do interior de um caixão lacrado. Caixão que ia descendo devagar.
            Tenta te mexer agora!
            E Ernesto percebeu que havia recuperado todos os movimentos. As mãos... Podia mexê-las! Podia mexer os braços, as pernas... As pétalas de cravo entrando em sua boca, cuspiu-as, engasgou-se... Aquele breu infeliz...
            O caixão descendo...
            Ainda há tempo, Ernesto! Grita! Grita forte que te escutarão e te trarão à tona de novo! Grita e te salva!
            O caixão descendo...
            Grita, idiota, que te salvarão!
            Mas Ernesto... Ah, Ernesto... No lugar de berrar, ele tornou a fechar os olhos.
            O caixão descendo...
            Relaxou o corpo, impôs-se uma total e melancólica imobilidade.
            O baque seco do caixão encontrando o fundo da cova. As coroas de flores sendo laçadas lá de cima, a terra caindo sobre o tampo do esquife, o ruído da lápide sendo acomodada lá no alto, a cantinela metálica das espátulas caiando o sepulcro...
            Um suspiro pesaroso e, depois, um riso triste, cansado, dolorido nos lábios do enterrado vivo. Ninguém jamais veria aquele riso, jamais.
            Então, é isso. Que não mais viesse o ar, que viessem os vermes terminar com o que, um dia, fora um verme humano...
            É... É isso...
Fica aí, Ernesto.

sábado, 1 de janeiro de 2011

MINHA DOCE CECÍLIA

            A cama rangia como quase a gritar. Aqueles lençóis já estavam extasiados com tantos movimentos pélvicos. Antunes e sua amante pareciam dois animais afoitos. Qual o fim do mundo fosse dali a pouco, o orgasmo urgia violentamente. Qual o fim do mundo... Qual o fim da vida... A morte...
Sexo é vida!...
Um motel vagabundo era aquele. Mas os motéis, todos eles, são sempre templos. Altares em que se misturam, de modo ritualista, inúmeras seivas.
            Subitamente, a porta do quarto foi aberta. Antunes e sua amante – nus, miseravelmente nus – encolhem-se num canto da cama... Antunes arregala os olhos! À sua frente, a visão do inferno!.... À sua frente, estatelada à porta, ladeada por alguém... à sua frente, sua amada esposa!...
Cecília, acompanhada de Marina – uma amiga de infância –, Cecília lançou um olhar gelado sobre Antunes... Apenas sobre Antunes... E não usou mais do que quatro palavras:
- Espero você em casa.
E Cecília, seguida por uma perplexa Marina... Cecília se foi...

            Mas o nosso conto, de fato, começa horas depois deste lamentável ocorrido, quando Antunes – após quase esvaziar o tanque do carro, de tanto rodar, à toa, pela cidade – finalmente chega em casa.
            O homem estava um trapo, um lixo. Roupa desgrenhada, cabelo desalinhado, um suor frio a varrer-lhe o corpo. Puro desespero.
           Foi entrando, hesitante, em seu adorável lar. A sala, à meia luz... O corredor que levava ao quarto...
O quarto!...
Ela devia estar lá, intuiu. Devia estar arrasada sobre a cama.
            Baixou a cabeça e chorou. Sua amada Cecília não merecia o que fizera. Dentre todas as mulheres boas do mundo, ela era a mais doce e mais frágil e mais companheira e mais...
            Não!... Ainda não seguiria para o quarto. Precisava de uma dose extra de coragem. Decidiu encaminhar-se à cozinha. Lá, bebericaria um cachacinha e só depois... Ah, só depois...
            Acontece que, ao chegar à cozinha, Antunes quase desmaiou. Sobre a mesa do recinto havia um farto jantar: costeletas – seu prato predileto –, arroz, feijão, pudim de leite. E o mais inesperado: em pé, junto a geladeira, avental atado ao corpo, Cecília com um doce riso nos lábios.
- Você demorou, querido! – O tom de voz mais cândido do mundo – Já estava ficando preocupada!
            O queixo de Antunes, por um triz, não lhe passou do umbigo.
- Cecília, eu... Bem, quero que você... Eu... – Gaguejar! Era preciso gaguejar: não existia melhor remédio para auxiliar as idéias a se articularem – Quero que entenda que... Eu...
            Cecília, porém, sempre ridente, dirigiu-se a Antunes, deu-lhe um afetuoso beijo no rosto e, segurando-lhe os ombros, conduziu-o à mesa.
- Espero que o jantar lhe agrade.
            Antunes sentou-se e examinou aquele maravilhoso cardápio. Um banquete para um adúltero?! Então, a idéia lhe ocorreu: veneno!... Aquilo tudo devia estar cheio de veneno!...
            Cecília instalou-se na outra cabeceira. Servindo-se com abundância, tratou de esclarecer:
- O tempero pode não estar muito bom. É que o cheiro-verde acabou e eu simplesmente esqueci de lhe pedir dinheiro para comprar mais – e parando para fitar o marido de forma incisiva – O que está esperando? Por que não enche seu parto, meu bem?!
Antunes encarou-a por alguns instantes.
            Veneno... Aquilo tudo devia estar empestado de formicida!...
Absolutamente trêmulo, pôs em seu prato um pouco de arroz, outro tanto de feijão e um naco de costeleta. Concluiu: como estava tudo envenenado, Cecília esperaria que ele comesse primeiro
            Mas Cecília, levando a boca uma surpreendente colherada de todos os itens que se achavam à mesa – menos de pudim, era claro –, Cecília explicou tudo:
- Você deve estar assim por causa do cansaço. 
            Cansaço?! Antunes fitou-a, em pânico. Ela estava se referindo ao cansaço do sexo! Ela vira, no motel, o quanto suara! Preparou-se para começar a ouvir as escu
lhambações.
            Só que Cecília completou:
- Esse emprego tem matado você! É preciso que converse com seu chefe!...
            Antunes provou da comida. Estava uma delícia! Logo em seguida, arremessou um olhar arguto ao voluptuoso pudim de leite. Bingo! O veneno estava na sobremesa!
            Como quem lê pensamentos e se diverte com isso, Cecília, de repente, serviu-se do pudim e degustou-o com lascívia.
- Ai, querido, o doce está sublime.
            A mente de Antunes fundiu. O que, diabos, estava acontecendo?! Fora flagrado pela esposa numa situação vexatória – transando, feito um celerado, com uma colega de trabalho –, mas a única coisa que parecia estar preocupando Cecília era aquele maldito jantar!...
            E o tal do jantar transcorreu no limiar da ânsia, para Antunes, e de todo banal, para Cecília.
            Pratos lavados. Cozinha arrumada. Antunes no quarto. Roupa trocada de modo tresloucado. Seria antes de dormir. O bate-boca seria antes de dormir.
            Antunes jogou-se na cama e, consciente de sua covardia, fingiu dar-se a Morfeu. Olhos trincados, percebeu quando Cecília entrou no aposento. Movimentos para lá, movimentos para cá. Um suave abre e fecha de gavetas.
            Antunes teve um estalo: Cecília devia ter trazido uma faca da cozinha e estava se preparando para...
            Abriu os olhos, ensandecido. Deparou-se com Cecília, em pé, a sua frente. Gritou e jogou o corpo para trás.
            A outra, por sua vez, sorriu.
- Oh, meu bem, assustei você!... – curvando-se sobre o marido, beijou-lhe os lábios – Queria apenas lhe dizer boa noite!
            Assim sendo, Cecília desligou as luzes do quarto, tomou seu lugar na cama e dormiu.
            Antunes encolheu-se sobre os lençóis. Que raios de situação mais ridícula era aquela?
            Sentiu um tranco no coração. Por Deus...!
            Sentou-se.
            Não podia dormir. Era isso! Cecília tentaria matá-lo durante o sono. Ah, não. Não mesmo. Sua esposa não o pegaria!
E Antunes passou a noite inteira acordado, de vigília. No final, descobriu apenas uma coisa: Cecília sabia como ninguém ressonar até raiar o sol.
            Dois, três dias se passaram. Uma semana. Nada de brigas. Nada de se tomar satisfações. E Antunes à espera, aguardando o momento em que Cecília explodiria. Aguardando o início de alguma vingança. Tudo, à sua volta, era suspeito: o copo d’água, a pasta de dentes, a roupa cuidadosamente engomada. Além de não mais dormir, logo adquiriu um novo hábito: não andava pelos cômodos da casa sem vasculhar o mais insuspeito dos cantos. Atrás das portas, embaixo dos móveis, por entre as revistas... Todo lugar podia ser o esconderijo de alguma arma. Arma?... Sim, a idéia o fascinou. Tinha de comprar uma arma para si. Precisava se defender de Cecília. A constante doçura de Cecília. Aquela amabilidade, tanto carinho... Ela estava lhe preparando alguma cilada. Precisava se defender de Cecília!
Comprou um revólver.
            À noite, acariciava a arma, enquanto fitava Cecília. Ele, insone. Ela, adormecida.  despreocupadamente adormecida. Languidamente descansada.
            Tratou de dispensar a amante. Não queria correr mais riscos do que já estava correndo.
            E Cecília sempre: “Querido, você deseja isso? Amorzinho, você quer aquilo?” Antunes a odiava por tamanha tortura.
            À noite, acariciava o revólver...
            “Meu bem, não se estresse no escritório!... Meu filho, tenha um bom dia, viu?...” Cecília estava maquinando alguma coisa. Podia haver cicuta no café. Podia haver chumbinho naquele bolo. Podia haver cianureto naquela lasanha.
            À noite, acariciava o revólver...
            Já não conseguia mais trabalhar direito. Quando lhe chagavam correspondências na repartição, ficava alucinado: cartas-bomba! E se fossem cartas-bomba?! Quando andava pelas ruas, seu olhar – estreitado, tenso – catava na multidão o assassino contratado para matá-lo. Levava horas para atravessar uma rua. E se, na direção daquele táxi, estivesse Cecília?!
            E ela eternamente cordata, amável... ridícula!
            À noite, acariciava o revólver...
            A noite. O escuro. O medo. O remorso.
            Uma noite, na sala, Antunes acariciou o revólver. Sorriu. Levou o cano até a têmpora direita. E puxou o gatilho.
            Velório. Um mar de gente perplexa. Por que Antunes fizera aquilo? Fora sempre um homem tão controlado, tão normal!
            A viúva, em pé, ao lado do caixão, parecia distante. Devia estar muito chocada, era o que todos comentavam.
            Marina – aquela amiga de infância, aquela do início – Marina aproximou-se de Cecília e lhe afagou o ombro.
- Que tragédia... Que horror...
            E Cecília calada.
- Em pensar que você o tinha perdoado por aquela traição.
            Cecília encarou a amiga. Sua voz ecoou fria:
- Quem disse que eu o tinha perdoado?
- Ora, você não fez nada. Não se vingou.
            Cecília pintou um riso doce nos lábios.
- Eu não me vinguei? 
Aquela delicada indagação fez Marina estremecer.
- Você imaginava que ele seria capaz de se...?
            E Cecília, num tom ameno, não usou mais do que quatro palavras para explicar tudo:
- Vinganças podem ser surpreendentes.