terça-feira, 20 de dezembro de 2011

FAMÍLIA S/A

Carlos Correia Santos

Pegou a lista telefônica e começou a procurar com avidez. Folhava o catálogo com o frenesi dos que não sabem exatamente por onde começar. Após uma e outra busca, partiu no rumo da letra F: “fachadas”, “faculdades”, “faixas”... Precisava achar. A modernidade dos tempos cria empresas para qualquer coisa. Não lhe restava dúvidas de que acharia quem oferecesse o que estava procurando. Não se aluga tudo? Roupa, carro, sexo? Havia de achar alguma firma que lhe alugasse uma...

Família...

Era 31 de dezembro, 11h30 da noite. Já estava com tudo pronto. Casa arrumada, ceia farta posta à mesa. Tivera trabalho, mas conseguira comprar tudo do bom e do melhor. Bacalhau de primeira, preparado com azeite importado. Humm! Cheiro maravilhoso. Champanhe Moët Chandon. Custara uma fortuna. Não dera a mínima para o preço. Dinheiro gasta-se, perde-se, nada é. Com a sobremesa tivera especial cuidado. Adorava doces. Framboesas flambadas em vinho tinto, guarnecidas com creme de nata. Mas não qualquer creme de nata. Creme de nata mesmo!... Obviamente, não esquecera a romã. Sorte é tudo na vida. E a decoração? Espalhara velas e incensos por todo lugar. A casa estava linda...

Tanta fartura, tanta beleza. Só lhe faltava aquele detalhe: uma família. Algazarra de crianças correndo por todo canto. Fulaninho chorando porque implicara com sicraninho. Todos rindo com o modo com que o caçula dançava aquela música da moda. “Parece um adulto, vejam só!”. Primos, tantos primos. Alguns muito queridos – aqueles que a gente passa o ano inteiro querendo rever -, outros insuportáveis, cínicos. Cada um – e todos – peças indispensáveis. Primos e suas esposas, no fundo entediadas por não estarem com suas reais famílias. Tios, tias. Muitos deles. Gordos, magros, baixos, altos, contidos, afetados. Ah... Avós e avôs... Amorosos como a origem de tudo. Infalíveis como o destino de toda jornada. E, claro, uma doce mãe... Meiguice, placenta e útero.

O bacalhau esfriando, a sobremesa ficando quente. Tanta fartura, tanta beleza e não havia ninguém com quem repartir o champanhe, a romã...

Devia haver na lista telefônica algum serviço de aluguel de família... Bastava procurar. Quem sabe não achava? Se encontrasse, pediria uma que viesse com mais avós do que primos. Já pensou? Quatro avós e quatro avôs! Que ótimo!

Quando fosse fazer a encomenda, precisava frisar algo: um pai... Não podia faltar um bom pai...

Já manuseava a lista com angústia e cansaço. Procurou em “Serviços Especiais”, “Acessórios”, “Artigos de Necessidade Básica”. Procurou até em “Empréstimos”. E nada. Acabou fechando a publicação, acabou deixando-a para lá...

Olhou para a farta ceia sobre a mesa, correu a vista pela decoração. No final, procurou consolar-se desejando a si mesmo um Feliz Ano Novo. Não ficaria triste. Não desistiria de ter esperanças...

Ano que vem encontraria uma família.

Tinha certeza.

Tinha toda a certeza do mundo.

Ano que vem, a lista telefônica estaria mais completa...

APLAUSOS PARA O ESPETÁCULO DO TROPEÇO



Chegue-se. Tome seu lugar nessa vã e imensa casa de espetáculos que sãos os tempos atuais. Valha-se de seus doces porque o açúcar sempre atenua a dor. Acomode-se plenamente a contento e prepare-se para aplaudir, pois o espetáculo vai começar.

Espetáculo?

Qual?

O tropeço.

Sim, o tropeço. Eis o grande espetáculo que tanto ganha ovações, aplausos e fãs nos dias de hoje. O tropeço.

Prostram-se as massas diante de seus famigerados twitters e facebooks para ver quem caiu, quem desabou, quem ruir. E assim se ri. O que se quer é rir. Gritar aos ventos todos dessa nau insanidade chamada internet. Gritar: aquele imbecil ali tropeçou. Caiamos como abutres sobre ele. Sim, façamos do clique bico de corvo para furar a carne daquela calma, afligir aquela alma. Lancemos o mouse sobre aquele que tropeçou e, qual ratos a despedaçar lixo (Ave, Chico Buarque), espalhemos tristeza e crueldade.

Em pensar que houve um tempo no qual compartilhar era apenas etimologia: partilhar com. Dividir o que de bom, o que de bem. Agora... Num compartilhar, compraz-se a infâmia. Compra-se intolerância. Vende-se a dignidade. Acha-se o pouco caso. Perde-se a paz de espírito.

Na plateia, o ávido espectador do tropeço, quando não encontra, caça. O fantoche da sanha geral, que baila sobre o fio da navalha diante da turba coberta pela burca do anonimato, tem que se estatelar, tem que se esborrachar. Ah, ele não fará seu número? Pois a turba o leva à lona. Assim, feito perdigueiros das bordas do apocalipse, os espectadores do tropeço dedicam-se a criar dramaturgias que derrubem.

E, nos meios dias, que se retuite a canalhice. Vivas. Milhões de vivas ao RT da bestialidade.

No entanto...

Tão no entanto...

Dos saltos ninguém fala. Para os saltos aplausos tão poucos... Não interessa festejar o que põe para frente. Aos acorrentados à mediocridade, pouco interessa celebrar o ir adiante.

E segue, desta feita, em cartaz o show do tropeço. O irônico é que as plateias se esquecem de algo divinamente poético. O espetáculo da vida é democrático. Você está aí nessa fétida plateia aplaudindo quem cai? Caindo na gargalhada? Aplausos para você. Amanhã o papel de protagonista, bebê, certamente há de ser seu.

sábado, 5 de novembro de 2011

O PERFUME DE HELLEN


Jonas entrou todo tímido no laboratório do perfumista. O lugar era lindo. Vidros coloridos por todo canto. Todo tipo de aroma no ar. O mágico alquimista foi logo dizendo: “Vieste pedir para eu fazer um perfume para Hellen, não foi?”. O garoto venceu a vergonha e respondeu: “Sim. Foi, sim.... Eu quero namorá-la, mas tenho vergonha de me declarar... Disseram-me que o senhor faz perfumes mágicos... Gostaria de comprar um”. O perfumista sorriu. E falou: “Tudo bem. Vamos começar o preparo”.

O senhor das químicas pôs um vidrinho sobre sua mesa de trabalho e, com cuidado, pegou da prateleira um frasco cheio de um líquido brilhante, dourado. Enquanto abria a vasilha, explicou: “Esta essência se chama Coragem... Para fazer o perfume que me pedes, temos que colocar uma boa quantidade dela”. Por alguma estranha razão, Jonas se sentiu mais forte. Sentiu-se mais robusto enquanto o liquido brilhante era usado. Depois, o velho homem apanhou outro frasquinho. Este continha uma poção azul, bastante cristalina. Ele falou: “Sabes como se chama isso aqui? Isso se chama Alegria... Um bom perfume de amor precisa ter muita alegria!”.

No mesmo momento em que a essência era derramada, nosso amigo percebeu que estava com vontade de rir. Mesmo sem motivo, teve muita vontade de rir. O perfumista passou a trabalhar com outro vidrinho. Dentro do novo recipiente, um líquido transparente. O alquimista contou: “Vamos agora botar isso. Sabes o que é? Isso é a Sensibilidade”. Jonas se emocionou. Percebeu que estava com vontade de chorar. Controlou-se. Desta feita, o próximo passo do velho sábio foi pegar um potinho feio, com um creme estranho, mal cheiroso. Não! Não botou o creme no perfume que estava fazendo para Hellen. Entregou o pequeno pote a seu cliente e disse: “Jogue no chão”. O garoto se assustou. O perfumista repetiu: “Vamos! Jogue no chão!”.

O menino, então, obedeceu. Lançou o potinho no piso. E foi caco para tudo quanto é lado. Mas acreditem: o creme fedorento sumiu rapidamente. O alquimista revelou: “Isso que quebraste é a essência conhecida como Covardia. Ela é assim mesmo: quando jogada fora, some sem deixar marcas”. O garoto sentiu-se ainda mais confiante. O misterioso senhor anunciou, por fim: “O perfume está pronto. Mas só podes levá-lo amanhã. Volta aqui e eu te entrego o preparo”.

Jonas assim fez. Foi para casa. Mal conseguiu dormir. Total ansiedade. No dia seguinte, retornou ao laboratório. Tomou um susto imenso. Tudo tinha sumido. Os vidros coloridos. O perfumista. Tudo tinha sumido. O ambiente estava limpo, limpo. Mas... Havia algo... Sim, lá estava o vidrinho onde tinha sido feito o perfume para sua amada. O recipiente, porém, não continha líquido algum. O que havia em seu interior era um bilhete. O jovem retirou o papel do frasco e leu o seguinte recado: “Meu querido Jonas, a vida é um laboratório mágico. O mais encantado laboratório que existe. Todos os aromas com que trabalhamos moram agora em sua alma. VOCÊ É O PERFUME DE HELLEN! Com afeto, seu amigo, O Perfumista"

* Narrativa do meu livro infanto-juvenil CONTOS PARA ACORDAR O SONHO ANTES DE DORMIR.


segunda-feira, 30 de maio de 2011

TIA MARÍLIA É COMPLETAMENTE SURDA

Deixando a porta aberta atrás de si, Wilma entrou em casa qual um furacão. Estava pálida, descabelada e desfeita em suor! O belo tailleur que vestia – escolhido com tanto esmero –  desgrenhara-se por completo!...
- Tia!... – Foi seu berro!
Nenhuma resposta.
Torceu a boca. Era mesmo muito estúpida por pensar que dona Marília a escutaria.
Correu para a sala de estar. Lá chegando, livrou-se da bolsa e da pasta de couro que carregava e agachou-se. Onde, raios, largara as chaves do carro? Esgueirando-se pelo enorme e felpudo tapete que recobria o piso do recinto, procurou embaixo dos sofás e da mesinha de centro.
Levantou-se com espalhafato.
Droga! Não podia ter perdido a porcaria daquelas chaves! Já havia procurado por toda parte e nada! Não estavam em seu quarto nem na cozinha... nem na garagem... A sala de estar era a última esperança.
Olhou o relógio em seu pulso: sete e quarenta e cinco. Só lhe restavam quinze minutos. Não podia acreditar que fosse perder a hora da prova. Três meses estudando qual uma infeliz para aquele concurso...
                        Vinda da cozinha, dona Marília surgiu no aposento. Nas mãos cheias de tremor, uma xícara com chá fumegante. Andar moroso, dirigiu-se à poltrona que ficava em frente à TV...
E Wilma, transtornada:
- Titia, a senhora não sabe das chaves do meu carro?... 
                        A anciã não deu retorno. Acomodou-se vagarosamente em seu assento, depositou a xícara num banquinho ao lado, pegou o controle remoto e ligou o aparelho de TV num volume inacreditável de tão alto.
- Tia, diminua esse volume!... – era Wilma, esbaforida!...
Onde estavam aquelas malditas chaves?!...
                        Desarvorada, a jovem mordeu os lábios e correu a vista por seu entorno.                       O volume da TV permanecia o mesmo...
- Diminua esse volume, tia! – tornou a gritar, enquanto conduzia-se a uma estante próxima à janela.
                        Revirou os porta-retratos e bibelôs que enfeitavam as prateleiras... Nada!...
                        Tornou a verificar a hora: dez para as oito!
                        Uma infame apresentadora de programas infantis balia baboseiras na televisão.
- Baixa o som desta desgraça, tia!... – esbravejou Wilma, já histérica!
                        Barulho de crianças gritando num auditório. As chaves perdidas. A hora passando. Uma sala de pernas para o ar. Uma prova a ser feita. Uma moça desesperada. Uma velhinha absorta. Crianças num auditório...
                        Wilma explodiu.
                        Furiosa, apoderou-se do controle remoto e desligou o televisor.
- Cacete, a senhora e sua miserável surdez!
                        A velha dama sorriu.
- Minha filha, você está ai!
                        Wilma foi irônica:
- Não, tia, eu não estou aqui... Isso é apenas um delírio seu.
                        A outra continuava sorrindo.
- O que disse?
- Deixa pra lá!...
- O que?
                        Wilma afastou-se, esquadrinhando o chão qual uma desequilibrada. Ainda tinha fé... Acharia as chaves... Acharia!...
- O que está procurando, minha filha?...
                        A jovem permaneceu calada: responder seria obviamente inútil!
                        Dona Marília levantou-se com certa dificuldade. Aos sessenta e quatro anos, era uma dessas criaturinhas idosas muito magras e bem baixas. O rosto, embora enrugado de norte a sul, denunciava a bela mulher que fora. Os cabelos, cuidadosamente tingidos, jamais se apresentavam mal penteados. Arrastando as pueris chinelas que calçava, tirou do bolso da bata algo tilintante e ladeou a sobrinha.
- Olhe o que encontrei em cima da mesa da cozinha... Você não devia guardar isto num lugar mais seguro? Acabará perdendo!...
                        Ao ver nas mãos trêmulas de sua tia as chaves que caçara feito uma louca, Wilma sentiu vontade de cometer suicídio. O tempo todo dona Marília estivera com o chaveiro e só agora lhe dizia!...
           Puxou o ar pelas narinas, tentando se conter. Pegou para si o objeto de sua agonia e examinou o relógio: oito horas em ponto. Havia perdido a prova!...
                        Em face do ar simpático e cheio de boas intenções da tia, Wilma entendeu, com mágica precisão, o sentido do vocábulo "furor".
                        Deu-lhe as costas e praguejou, entre dentes:
- Velha surda!...
- O que disse, querida?
- Nada!...
                        Já que só lhe restava agora tirar aquela roupa suada e tomar um banho, Wilma partiu rumo a seu quarto, no andar superior... "Velha surda!", repetia para si mesma, no que subia as escadas... “Velha surda!...”

                        *                                     *                                   *

- Eu só aturo esta velha por causa da grana!
- Wilma! – a constrangida exclamação de Antônio - Ela pode ouvir!
- Qual o quê!... Ela é surda que nem um vaso!
                        Wilma e seu noivo estavam sentados no chão da sala de estar, bem próximos da poltrona em que cochilava dona Marília.
                        Era noite de sábado e o apaixonado casal reunira-se, como de hábito, para traçar planos sobre o futuro.
- Já não agüento mais - prosseguia Wilma – É um horror servir de babá para essa mulher...
- Por que, então, não jogamos tudo para o ar? Interna essa coitada num asilo!
- Você sabe que não podemos!... Esquece-se da grana?... Esquece-se que ela já fez um testamento?!...
- Sim, mas cogitemos a possibilidade dela não ter indicado você como sua única herdeira... Todo o esforço que você empreendeu, ao longo destes anos, vai por água abaixo...
- Disso não tenho medo!... Sou o único parente vivo que ela tem... E, além do mais, a infeliz me adora tanto que chega a enjoar... O problema – Wilma franziu o cenho e lançou um olhar mórbido sobre a dorminhoca anciã – é que ela não morre nunca...
- Fala baixo, mulher!
                        A outra se impacientou:
- Eu já disse que essa velha é surda! Mais surda que pedra que convive com britadeira! E você sabe disso!... Ahrr, que ódio! Foi por culpa da surdez dessa cretina que eu perdi a prova do concurso, semana passada! Agora... agora nem aquela chance de emprego eu tenho mais!... Droga!... – arremessou outro olhar maligno sobre dona Marília – Para que o nosso casamento saia de vez...  só nos resta apelar para a herança...
- Credo, você fala como se eu não pudesse sustentar nosso futuro...
                        Wilma gargalhou.
- E você acha que pode?... Pelo amor de Deus, Antônio! Eu sou bastante cara, sabe?... Com o seu emprego de farmacêutico a gente não chega nem na esquina...
                        O rapaz reclinou a cabeça, desolado.
- Também, não precisa ofender...
- Oh, meu amorzinho... – Wilma beijou-lhe o rosto com sincera ternura – Penso apenas no melhor para nós dois. E o melhor para nós dois é a herança desta velha surda.
- Mas até que ela morra, não poderemos contar com este... auxílio.
- Eis o ponto! – a jovem sorriu cinicamente – A morte da velha surda não tem que demorar tanto para acontecer...
                        Antônio empinou o corpo. Os lábios ressecaram-se, vítimas de uma ânsia reprovável.
Deu uma de ingênuo:
- O que está querendo dizer?
- Você sabe muito bem!...
- Por acaso, está insinuando que podemos...
- Nós podemos, meu querido, dar uma forcinha ao destino. Quero dizer: morrer daqui a um certo tempo será mesmo o destino desta velha. Assim sendo, por que não poupá-la de uma arrastada doença? Por que não libertá-la de imediato do peso da idade? Ela já não vem demonstrando sinais de precoce exaustão. Pois bem!... Faríamos por ela uma espécie de... eutanásia! Sinceramente, discordo de quem considera a eutanásia um crime!... – riu, sardônica.
                        Antônio animou-se vilmente.
                        Foi cínico:
- Wilma, não convém falarmos disso aqui!... Essa mulher pode acordar e ouvir!...
- É isso que me emociona!... Não é excitante?... Tramar a mort... Digo, tratar do repouso prolongado de alguém bem na cara desta pessoa... – suas carnes fremiram de prazer – O que me diz?...
- Eu não sei!... Como faríamos?!
- Ora, Antônio!... Você, como bom farmacêutico, deve conhecer alguma discreta química que, posta numa sopa, em um chá... enfim, algo que silencie um coraçãozinho idoso sutilmente, sem deixar vestígios...!
                        As retinas de Antônio faiscaram.
- Será complicado... mas não impossível!... E quando faríamos o... "serviço"?
- Depois de amanhã... É o tempo que você terá para arranjar o produto.
- Agora, tem um problema: não sei se terei coragem de administrar o... o...
- Silenciador, chamaremos assim... – Wilma achou graça qual uma demente – Tudo bem, providencia o silenciador e deixa o resto comigo...
- Você é louca!
                        Wilma fitou-o profundamente...
- Louca por você!
                        Então, impelidos pelo frenesi, os dois se abraçaram de modo denso e nervoso... Frenesi... Beijaram-se com selvageria... Puro frenesi...
                        De repente, a televisão foi ligada!
                        Desvencilharam-se num susto!
                        Dona Marília, parecendo não ter notado a presença de ambos, começou a brincar com o controle remoto, mudando ininterruptamente os canais, à procura de algo para assistir!...                      
                        A voz de Antônio saiu trêmula:
- Desde quando esta mulher está acordada?!...
                        Wilma fez muxoxo
- Pouco importa.
- Criatura, e se ela tiver escutado?
- Ela é surda, Antônio... Surda!... Quer ver? – levantou-se e se pôs a bradar bem junto a outra – Tia! ... Tia!!!...
                        Somente no quinto e estridente "Tia!", dona Marília reagiu:
- Minha filha, você está ai!... E com Antônio!... Como vai, meu rapaz?!...
                        Antônio colocou-se de pé, hesitante.
- Vou bem!... E a senhora?
- O que?
- Como tem estado a senhora? – esbravejou, retendo uma maliciosa vontade de gargalhar!
                        Dona Marília riu com meiguice.
- Ótima, obrigada!
- Volte a ver sua TV, tia! - gritou Wilma - Vou levar meu noivo até a porta. Ele já vai!
- O que?...
                        Wilma usou toda a força de seus pulmões:
- ANTÔNIO JÁ VAI !!! – canto de boca : – Velha surda!...
- Ah, sim!... Até logo, meu jovem!
- Até breve, dona Marília!
                        Wilma acompanhou o noivo rumo à porta. No caminho, reiterou:
- Não se esqueça: depois de amanhã, einh! Providencie o mais rápido possível o nosso silenciador!...
- Deixa comigo!... Tchau!... Eu te amo!
- Também te amo!
                        *                                     *                                   *
                        Enquanto a água fervia, Wilma recapitulava as instruções que Antônio lhe dera.
                        "É tudo muito simples: adicione esse pozinho branco em qualquer líquido, quente ou frio, que a velha tenha o hábito de ingerir... Sei, lá!... Convide-a para tomar um chazinho com você!... O efeito surtirá rápido... Quando tudo tiver acabado, telefone para mim que virei correndo... Então, esperaremos o tempo certo e levaremos o corpo para o hospital... O diagnóstico será um terrível e fulminante ataque cardíaco!"
                        Wilma riu.
                        O bico da chaleira começou a apitar. Apagou o fogo. Encheu de água borbulhante as duas xícaras que repousavam numa bandejinha de prata, à sua frente, sobre o mármore da pia. Em ambas fez imergir sachês de camomila desidratada. Apenas em uma, porém, despejou todo o conteúdo do saquinho que recebera de Antônio. Guardou o saco vazio num dos bolsos da calça. Destruiria tal indício depois. Empunhou a bandeja e se preparou para se dirigir à sala. Entretanto, antes que tivesse esse trabalho, dona Marília entrou na cozinha, embalada por seus passos vagarosos e curtos.
                        Sentando-se à mesa que havia no recinto, a idosa bocejou.
- Ah... Bom dia, minha filha...
                        Wilma acomodou a bandeja na mesa - a xícara com a infusão letal na direção da velha - e sentou-se em frente à pobre tia.
            Fitou-a com infame desdém.
- Bom dia, querida!... – Usou de uma absurda dissimulação – Olhe, já fiz o seu chazinho. Beba-o. Vou até acompanhá-la, hoje.
- O que?
- Velha surda!... – murmurou primeiro para, depois, berrar: – Fiz chá para a senhora e para mim!... Beberemos juntas!
                        D. Marília era toda solicitude.
- Ah, que bom. Você só se esqueceu de por no pires uma colherinha para eu mexer o açúcar. Você já colocou açúcar, não colocou?
                        Açúcar, zombou Wilma intimamente, essa era boa. Morte doce! Claro que não gastara açúcar com aquilo.
                        Levantando-se, afoita, para buscar uma colher no escorredor de pratos, mentiu através de urros:
- Já coloquei açúcar, sim!
                  Colherinha pega, voltou à mesa e entregou o utensílio a dona Marília. Seria mesmo ótimo que ela desse uma mexidinha no chá. Talvez assim o veneno se incorporasse melhor ao líquido.
                        Acompanhou, em êxtase, sua vítima agitar a infusão fumegante, tomar a xícara para si e levá-la à boca.
                        Antes de dar o primeiro gole, no entanto, dona Marília soprou a fumaça que subia por seu enrugado rosto.
- Está quente - riu.
                        Em seguida, para o total deleite de Wilma, o chá nocivo foi ingerido em abundância. Tragadas fartas. Só houve uma pausa para que a desafortunada perguntasse:
- E você, minha filha?... Não vai beber o seu? Já deve ter esfriado bastante!
                        Triunfante, Wilma enroscou o dedo na asa de sua xícara e conduziu aos lábios o preparo de camomila que reservara para si. Aquilo seria como a champanha de sua vitória! Sorveu seu chá até quase o fim. Senhora absoluta da situação, reacomodou a vasilha no pires e suspirou.  Agora, tinha somente de esperar que sua tia caísse babando sobre a mesa!
                        Sentiu as mãos se umedecerem. Estava ansiosa! O sangue explodiu nas veias. O coração começou a palpitar.
                        Dona Marília saboreava devagar, sem pressa, o resto de sua última bebida
                        A tensão fez os pés de Wilma começaram a ficar dormentes. Precisava acalmar-se. Tudo daria certo! Seus braços pareceram mais pesados. O coração pulsava qual um alucinado. Uma dor fina castigou-lhe as têmporas. Assistia a todos os movimentos da tia com expectativa!
                        Dona Marília abandonou a xícara e fitou a sobrinha de modo estranho, cáustico. Ergueu o queixo e crispou o semblante.
                        “Era o veneno a fazer efeito!”, pensou a jovem assassina. O desfecho aproximava-se! A garganta de Wilma ardeu. De tão ansiosa que se encontrava, o ar dava a impressão de estar lhe faltando!...
                        O ar...?!
                        Por Deus!... Não era mera impressão! Estava sentindo mesmo falta de ar!...
                        Com extrema dificuldade, levou as mãos ao pescoço.
                        Sua respiração!... Estava perdendo a respiração!
                        O que diabos era aquilo?!...
                        Apavorada, entreolhou a tia.
                        Então, dona Marília falou num tom manso:
- Eu troquei as xícaras, enquanto você pegava a colherinha!... Bastou girar a bandeja!...
                        Wilma tentou sair da cadeira. Inútil!... Havia perdido todos os reflexos da cintura para baixo!... Quis gritar, pedir socorro, mas percebeu que sua glote começava a fechar!... Encarava sua rival com os olhos esbugalhados!...
                        Dona Marília levantou-se com agilidade e calma surpreendentes. Caminhou até a sobrinha e, ladeando-a, inclinou-se para sussurrar-lhe ao ouvido:
- Nunca confie em velhinhas surdas, minha cara – riu de modo cruel – Ah, sim... antes que eu me esqueça – Um delicioso berro: – Velha surda é a senhora sua mãe!!!...
                        E Wilma caiu morta sobre a mesa!...
                        Passados alguns minutos, receoso, Antônio entrou na cozinha...
Foi logo perguntando:
- Tudo certo?!...
                        Dona Marília entreolhou-o intensamente... Demorou a responder:
- Tudo, querido!... Conseguimos ludibriá-la! Ela sempre foi uma idiota mesmo!
                        Assim, os cúmplices sorriram. Com a sofreguidão própria dos amantes clandestinos, abraçaram-se e terminaram por trocar um saboroso beijo na boca!...
                        Estavam felizes. Cada um a seu modo, era bem verdade! A ladina e paciente Marília, por ter se vingado da sobrinha, que durante anos, a humilhara. O perigoso Antônio...  por ter, enfim, se livrado da única pessoa com quem corria o risco de dividir a herança que, caso tudo desse certo, não tardaria a receber!...
.

domingo, 6 de março de 2011

DOM MENINO

Destempero. Nenhuma palavra seria mais perfeita para traduzir o modo como o menino Miguel invadiu a humilde tapera na qual morava com o velho pai. O silêncio silvestre da noite marajoara foi ludicamente quebrado pela ansiedade luminosa do garoto de doze anos:
- Ó só! Ó só! – Repetia entre risos, sacudindo no ar o que parecia ser uma antiga publicação.
            Por trás da vela que lhe servia de amiga, o bom caboclo Sancho interrompeu o trabalho artesanal ao qual se dedicava. Abandonou sobre a simplória mesa à sua frente o meticuloso entalhe em madeira e ergueu apenas o olhar para tentar entender a agonia do filho:
- Doidice é essa, pequeno?
            Coroando sua inusitada chegada, o menino pousou suavemente sobre a mesa a surpresa que trazia consigo.
- Ó que bacana, pai!... É um livro!... Foi um moço que ia passando na estrada aí fora que me deu... – Mesmo à meia luz, era impossível não ver as faíscas de contentamento que pulavam nos olhos do garoto – O moço disse que o nomi do livro é... – Fez esforço para lembrar – Cumé o nomi?... Ah, sim! Dom Quixote!... Isso: Dom Quixote!... Um homi engraçado, sabe pai?... Com uma roupa esquisita... Ele falô pra trazê o livro pro senhô...
            Por trás da vela, o sutil receio no semblante de Sancho:
- Pra mim?... Eras!... Pra que já?
            Sentando-se em frente ao pai, Miguel explicou, enlevado:
- Pro senhô lê pra mim...
            Uma brisa vinda dos rios fez dançar a chama única que iluminava o local. O caboclo Sancho tremeu discretamente. Chorou. Não de modo visível. Chorou por dentro. A inverdade que sustentara por tanto tempo podia ser revelada, ali, naquele instante.
Miguel devia ter uns cinco anos quando perguntara para Sancho: “O que é lê, pai? O que significa isso?”. O velho caboclo, que jamais tinha recebido o presente de entender o mundo da escrita, buscara explicar ao seu modo: “Lê é passá os olho nas letra e falá em voz alta o que elas diz, fio”. Orgulhoso, o menino indagara: “O Senhô sabe lê, num sabe, pai? Meu pai sabe tudo! Num tem coisa que o senhô num conheça, né não?”. Partido pela vergonha de não poder gestar todas as felicidades do filho, Sancho decidira mentir: “Sim, fio. Eu sei lê, sim”. Esses anos todos, sempre que Miguel lhe pedia para “ler” alguma coisa, o artesão talhava com criatividade alguma falação que pudesse convencer o menino. Funcionava. Toda vez funcionava.  
            Mas agora... Agora aquilo!... Um livro!... Um livro era diferente...
- É esse mesmo o nomi do livro, pai? É isso que as letra tão dizendo: Dom Quixote?...
            O outro deitou os olhos sobre o título. A aflição de nada entender...
            Resolveu continuar não desiludindo sua cria:
- Sim. É isso mesmo.
- E o que qué dizê isso, pai? O que qué dizê... Dom Quixote?
            A brisa fria dos rios... O respostar de Sancho se congelou... De repente, teve a impressão de ouvir uma estranha voz masculina cochichar: “O amor paterno sabe ler e explicar qualquer magia...”. Olhou em volta, procurando o autor da frase, mas nada achou. Teria sido uma visagem?
Suspirou e decidiu fazer o que sempre fazia. Reescrever os textos com a voz da intuição:
- “Dom Quixote”, na língua dos índio antigo, qué dizê “O Menino Que Sonha”
- E é?
- É...
- E sonha cum quê, pai?
- Bora lê... Bora lê...
            Com lentidão, Sancho abriu o livro. Uma nova rajada de vento fez a luz da vela estremecer fortemente. Guiado pelo trote da imaginação, o caboclo deslizou a vista pelo mistério das palavras diante de si e fabulou:
- Ele sonha aprendê a lê e escrevê, fio!... Ele botô essa idéia na cabeça dele. Subiu no lombo dum cavalo desses daqui do Marajú e saiu por esse mundo cheio de mata atrás do sonho dele. Mas o tal tinha um pobrema. Cum´ele num sabia lê as coisa do mundo, o pobre olhava um negócio e via outro!...
- Conta, pai! Lê! Diz cumé que foi!
            E o velho Sancho foi criando sua própria narrativa. No passar das páginas, no ir dos indecifráveis parágrafos, foi construindo com a fala a aventura do Menino Que Sonha. Descreveu em detalhes a curiosa passagem na qual o protagonista confundiu um monte de samaumeiras com um exército de Matintas Pereras gigantes. Pensando que estava cercado pelas enormes rivais, o aventureiro preparou-se para guerrear. O clarão do sol, porém, soletrou a verdade nos olhos do menino. Desfeita a confusão, ele seguiu...
            Maravilhado, ouvinte atento, Miguel concentrava o olhar nas sombras que a vela projetava pelas paredes em redor. Via nelas cada cena que seu pai ia relatando.
            O caboclo contava. Motivado pelo deslumbramento de seu curumim, contava. Contou que, certa altura, o herói do livro iludiu-se com um tronco solto a boiar pela correnteza de um rio. Pôs no juízo que havia encontrado o Boto!
- E o que sucedeu, pai? Lê! Anda, lê!...
            Rindo com ternura, o velho Sancho “leu” que o vento da magia soprou o engano para longe dos olhos do pequeno viajante. E assim, fantástica, a contação prosseguiu. Guiado pelas vistas da imaginação, o personagem principal foi vivendo sua saga. Esbarrando na ilusão de encontrar o Mapinguari, a Boiúna e o Curupira, o herói foi filtrando com a alma os encantos do misterioso mundo que o cercava.
            Atingida a última página do livro, o pai de Miguel criou o inspirado arremate:
- No final, fio, o menino descobriu que, pra lê as coisa do mundo, nós tem que usá o enxergador do coração. Lê é passá os olho nas letra e falá em voz alta o que elas diz. Mas tem muita belezura que só os sentimento da gente dá conta de lê... – Fechou o fascículo com altivez – Pronto. Tá contado o causo!
            As sombras nas paredes pareceram aplaudir. Miguel suspirou de contentamento.
- Que livro bonito, né, pai?
            Quem opinou, no entanto, não foi Sancho. Antes que o velho caboclo pudesse dizer qualquer frase, uma voz – a mesma voz masculina que o ribeirinho ouvira no início de sua narração – manifestou-se:
- Que linda maneira de ler o meu livro...
            Sancho e Miguel assustaram-se ao descobrir que à porta da tapera encontrava-se um intrigante cavaleiro de idade avançada. Trazendo sobre o mirrado corpo, uma desgastada armadura, o recém-chegado completou:
- É como eu já havia dito: só o amor paterno sabe ler e explicar qualquer magia!...
            Num pinote, Miguel ergueu-se e esclareceu:
- Foi esse o moço que deu o livro, pai! Foi ele.. – Tomando para si a publicação, o garoto correu até a porta e entregou-a ao estranho – Nós agradece, viu! Meu pai leu tudinho, tudinho pra mim. Uma formosura de história!
            O cavaleiro sorriu timidamente. Sancho baixou a cabeça, encabulado. O olhar atado ao frágil visitante, Miguel perguntou:
- Cumé o nome do moço?
            Outro riso tímido e a resposta:
- Já me chamaram de muita coisa mundo afora. Já me batizaram de louco, de bobo, de figura triste. Mas hoje, aqui nesse recinto tão nobre... Hoje, diante de um verdadeiro fidalgo das ilhas... – Lançou um comovido olhar a Sancho. O caboclo vexou-se – Diante de um Pequeno Príncipe ribeirinho – Redirecionou o olhar a Miguel. O rapazinho se encheu de pavulagem – Hoje eu descobri que fui apenas um menino que sonhava. Doravante quero ser conhecido simplesmente como... Dom Menino!...
            Sorrisos nos rostos de todos. Atmosfera de arrebatamento mútuo.
            Então, o enigmático mais uma vez se impôs. Uma nova rajada de vento invadiu a tapera e a vela se apagou. Perdidos no breu, Miguel e Sancho pelejaram para encontrar fósforos que trouxessem a luz de volta. Em algum ponto da escuridão exterior, um relinchado e os galopes de um cavalo a partir. Novamente iluminada pela delicadeza de uma só chama, a tapera se revelou ambiente onde apenas se via o caboclo artesão e seu filho:
- Égua! O moço sumiu, pai!...– Um arfado longo – Pena. Ele levô o livro! Ia pedi pro senhô repeti as leitura!...
            Afagando os ombros de seu herdeiro, Sancho contemporizou:
- Tem mal não, fio. Quando nós lê um livro ele fica dentro de nós...
            Súbito, o surpreendente resolveu regressar. Num místico rompante, a chama da vela cintilou vivamente revelando sobre a mesa um novo livro. Exultante, Miguel correu no rumo do achado. Ele não sabia, mas na capa estava escrito o título “Dom Casmurro”.
- Pai, vô confessá uma coisa pro senhô: essa noite eu aprendi a lê também. Juro que aprendi. Senta aqui, senta, pai... Deixa eu lê esse livro pro senhô... Sabe como ele chama? O nome desse livro é “O Causo do Homi Que Ensinô o Fio A Voá”... Senta aqui, pai... Senta e escuta...

domingo, 13 de fevereiro de 2011

SUTILEZA


                        Lá estava Zílian em seu magnânimo escritório! O último andar do mais alto prédio da mais agitada metrópole...
As janelas de vidro fumê... e, após as mesmas, o infernal mundo inferior...
           Recostado à janela, Zílian contemplava a correnteza humana que se arrastava pelas ruas abaixo de seu poderoso escritório. Admirava tudo aquilo, absorto. Riu com amargura... O fato era que odiava estar onde estava, assim como aquelas pessoas odiavam estar onde estavam. E aquelas pessoas, com ódio, deviam pensar “ah, como eu queria estar num escritório destes”. A vida é isso mesmo: ironia morta!
            Ironia... O caos urbano... Burburinho... Buzinas... Engarrafamento de emoções: tristezas e alegrias misturadas... Tristezas...
                        Quem poderia dizer que Zílian era um homem triste? Quem?...
                        Uma lágrima caiu-lhe dos olhos... O olhar fixado nas ruas e pessoas, lá em baixo... Nas calçadas...
                        Então Zílian viu. Ninguém estava se dando conta, mas ele a percebeu! Mesmo de tão longe, pôde enxergá-la. Um alento em meio ao caos... uma dádiva em meio a danação...
            Mas... Por Deus...! Precisava fazer alguma coisa ou ela seria destruída, pisoteada pelo individualismo daqueles transeuntes! Ela parecia lhe pedir socorro... Era tão linda, tão linda!... Fora abandonada, não restava dúvidas! Por quem? Quem tivera coragem de deixar ao relento uma coisinha tão graciosa?!
                        Determinado, Zílian ergueu-se da poltrona. – O tédio havia sumido de seu semblante –  Urgia que tomasse alguma providência. Desceria até a rua. Isso! Salvaria aquela pobre coitada!
                        Partiu, assim, de seu auto claustro!... Foi-se...
                        Entretanto bastou que abandonasse o gabinete para que, na ante-sala, a secretária se lançasse em seu encalço...
- Ah,  Dr. Zílian, que bom que saiu... Eu estava precisando lhe falar, mas como o senhor deu ordens para não ser importunado...
                        Ele não parou, não deu a menor atenção a outra. Continuou seguindo, firme, queixo erguido, rumo ao elevador.
                        E a secretária no seu rastro...
- Sabe o que é? A firma do contrato acabou de telefonar... Eles querem uma resposta urgente...! Aliás, parabéns, Dr. Zílian! É um contrato milionário este!...
                        O executivo andando...
- Dr. Zílian?... Doutor?!... O que... o que faço... Eles estão aguardando...
                        Um tilintar eletrônico. Era o elevador que começava a fechar as portas. Iria descer...
                        Zílian gritou para o ascensorista:
- Espere!...
                        O jovem, lá dentro, estremeceu e tratou de obedecer.
                        E a secretária, pasmada com a insana indiferença do patrão:
- Doutor?!... Telefono dizendo que está tudo certo?...
                        Zílian embrenhou-se no elevador e ordenou ao ascensorista:
- Vamos, vamos! Desça!
                        Catatônica, a secretária ficou do outro lado das portas a se cerrarem.
                        15o andar... Uma vida... 14o... Outra existência... 13o...
                        Zílian já começava a sentir ódio daquele marcador. Parecia a praga de uma lesma!
                        A pobrezinha... abandonada na calçada! E se alguém a machucasse, se lhe fizessem mal?
                        Afrouxou o nó da gravata e bufou.
                        O ascensorista resolveu ser simpático:
- Quanto calor, não é, doutor?
                        Zílian fitou-o, perplexo. Um ser humano decididamente não sabe interpretar outro. Calor?! Aquele afrouxar de gravata dizia coisas tão mais pungentes: “A angústia está me corroendo!”... “Esta vida me sufoca!”... “A maldita mesmice do quotidiano me estrangula!”...  Qual o que! As pessoas sempre preferem acreditar no mais banal!... Calor! Por não se achar um doutrinador de mentes, preferiu continuar mudo!
                        Súbito, escuridão total e o som de algo saindo de sua rotação...
                        O elevador enguiçara!
- Desgraça! – Explodiu o executivo.
                        O ascensorista entrou em pânico:
- Ai, doutor, desculpa!... Quero dizer, não é culpa minha – Seu emprego, seu emprego! O chefe se enfezara! – Eu só cuido de fazer essa máquina subir e descer... Ai, meu Deus!...
                        E Zílian só conseguia pensar na pobrezinha que fora abandonada sobre a calçada...
- Ai, doutor, o que a gente vai fazer ... Socorro! – O jovem começou a berrar. A verdade, terrível e ridícula, era que o ascensorista tinha pavor de ficar preso em elevadores – Socorro... Alguém ajude, alguém acuda!
                        O ir e vir de pessoas, refletiu Zílian... Naquele instante, quantos deviam estar passando pelos andares acima e abaixo daquela geringonça? Quantos? Mas ninguém estava ouvindo os berros do ascensorista!... Um ser humano jamais ouve os apelos de outro. Não se escuta gritos, o que dizer de sussurros d’alma?!
                        Com certeza, o único que atinaria para o desespero do jovem, ao seu lado, seria o técnico dos elevadores, afinal fora treinado para isso... Só para isso!
                        Dito e feito:
- Calma vocês aí! – Uma voz aborrecida – Eu sou o técnico e já vou resolver o problema!
                        “Calma vocês aí?!” Zílian riu consigo mesmo. O ser humano adora generalizar um vexame!
                        A pobrezinha abandonada sobre a calçada!...
                        “Trec” de cá, “trec” de lá... Solavancos... E as portas se abriram...
                        Zílian saiu, esbaforido...
                        O técnico:
- Doutor? Por que não me avisaram que era o senhor que estava aí dentro?
                        O executivo, sem parar de andar, respondeu mentalmente: “Porque não era só eu que estava lá dentro... E, caso não fosse eu, o que teria acontecido? O socorro chegaria um pouquinho mais tarde?
                        A escada... Restava-lhe a escada. Aquele ainda era o nono andar!
                        Vitimado pela ânsia, Zílian se pôs a descer os degraus qual um adolescente: ligeiro, inconseqüente, alheio aos riscos de uma queda...
                        Oitavo andar.
                        Sétimo andar.
                        Sexto.
                        Quinto...
                        Já pulava os degraus de dois em dois... Um adolescente indisciplinado... Livre... Louco... Autêntico...
                        Precisava ir ajudar aquela coisinha delicada. Como alguém podia tê-la abandonado?
                        Quarto andar.
                        Terceiro.
                        Segundo.
                        Um adolescente, pulando os degraus de três em três... Ah, como era bom poder fugir das convenções... Fechou os olhos... Três em três degraus... Abriu os braços...
                        A queda!
                        Zílian rolou pelos últimos lanços da escadaria. Despencou feito um peso morto. Ao fim da patética seqüência de cambalhotas, sua cabeça se chocou contra uma parede qualquer. Um filete de sangue desceu-lhe pela testa. Carmim efervescente.
                        Uma faxineira correu para acudir o pobre homem.
 - Nossa Senhora!... Dr. Zílian!... 
                        O executivo tateou o chão... a parede cruel... e se pôs de cócoras.
                        Riu de si mesmo...
                        Conjeturou: é bom fazer pouco de si próprio, uma vez e outra. Na maioria das circunstâncias, somente aprendemos a nos valorizar quando nos desvalorizamos.
                        A mulher apalpava-o qual uma louca: “ O senhor está bem? O senhor está bem?
                        Ergueu o queixo para esquadrinhá-la – O sangue caiu-lhe rosto afora – Ele, o patrão, agachado. Ela, a empregada, erguida. Seres humanos não sabem disfarçar seus mais recônditos sentimentos. Ele agachado, ela empertigada... Havia prazer nos olhos daquela mulher!
                        Riu.
                        Levantou-se, por fim, cheio de dignidade. Disse que estava tudo bem e saiu correndo de novo.
                        Abandonou o vão das escadas – Estava no térreo, afinal – Jogou-se em desatinada carreira pelo hall do prédio. Desfez, por completo, o nó da gravata... Que pensassem que era calor, que maldissessem que era doidice! Atravessava o hall correndo.
                        Um mar de miseráveis elegantemente vestidos. Esbarrava neles todos. Pelo ar, uma sucessão de mecânicos : “Oh, Dr. Zílian, desculpe-me!... Tudo bem com o senhor?”. Falsos! Todos o odiavam. Em essência, os seres humanos vivem para sentir amor pelo ódio que sempre nutrem uns pelos outros...
                        Retirou-se do prédio. A rua. A rua... Os demônios do Inferno de Dante se arrastavam por aquelas calçadas...
                        E a doce coisinha que resolvera salvar, onde estava? Ah, sim... Mais a frente! Era mais a frente!
                        Abriu passagem por entre os demônios – digo: pedestres – com desavergonhada agressividade. Empurrava-os, acotovelava-os. Tinha de salvar aquela pobre coitada...!
                        Imbecil...!”, “Cretino...!”, “Seu marginal...!” Ali, ninguém sabia quem era o Dr. Zílian...
                        Correu...
                        O mar de gente... Mormaço... Buzinas...
                        Onde ela estava?!...
                        Onde?! Ora, a sutileza é a coisa mais evidente que existe!...
                        Zílian estagnou-se... Suspirou, feliz, ao se deparar com a responsável por sua “Jornada rumo a Salvação”. Ela continuava no exato lugar que vira, lá de cima! Abaixou-se diante da pobrezinha... Tomou-a entre as mãos com extremo cuidado. Levou-a às narinas e inspirou seu divino perfume...
                        Como alguém tivera coragem de abandonar uma rosa sobre aquela calçada imunda?! Como...?!