sábado, 18 de dezembro de 2010

TODA SAUDADE É VIL E VÃ

           

          No abrir-se da porta, aquela imagem quase monocromática. Um delgado vestido preto, trajando a palidez de uma flor-frágil. Toda a tradução da delicadeza cabível em uma dama.

           O carteiro, retido à soleira, teve de deter o impulso de parecer idiota. Fora simplesmente tomado de assalto por toda aquela beleza triste.           
            A jovem mulher falou mais com os olhos do que com os lábios. E disse apenas:
- Sim?...
            Não... Por alguns segundos, o carteiro esqueceu-se do que havia decorado para dizer. Sim, lembrou-se de repente.
- Bom dia, senhora. Sou do serviço de posta restante, dos correios – os olhos nos olhos vagos da outra – Bem, tivemos um problema de extravio com uma correspondência endereçada a esta residência. Agora, depois de um ano é que conseguimos detectar o erro. E por se tratar de um lapso tão grave, fui designado a entregar pessoalmente a carta... É que ela foi originalmente postada com a recomendação de urgência – os olhos nos olhos fugidios de sua interlocutora – Aqui está...
            E um envelope amarelado foi entregue a mulher vestida de preto.
            Não foram mãos que tomaram para si a carta. Foi puro vento. O olhar da dama-flor-frágil recaiu no sobrescrito e seu corpo inteiro estremeceu, quase a fazendo cair.
            A agilidade do carteiro, que rápido se adiantou para ampará-la, impediu uma queda.
- Leve-me para dentro – foi o pedido que ela fez com quem pede as últimas coisas da vida.
            O carteiro teve de carregá-la. Um feminino hálito quente dedilhando seu queixo, enquanto invadia aquela estranha casa escura, levando nos braços uma dama delgada e frágil. E tudo o levou a uma sala onde nada mais havia que uma cadeira de balanço e um pequeno banco, postos um em frente ao outro.
            Acomodou a anfitriã na primeira e tomou a liberdade de se instalar no segundo.
            Desfeita em seu assento, parecendo respirar só o suficiente para ainda existir, a mulher murmurou:
- Foi meu marido quem mandou essa carta. 
            O carteiro não teve tempo de falar nada. A outra continuou a sussurrar, encarando o pobre empregado dos correios com se lhe tivesse ódio:
- Eu o enterrei ontem, você entende?... Ele morreu e eu o enterrei ontem...
- Santo Deus... – um engolir em seco – Sinto muito. Acredite: sinto muito mesmo.
            Ela estendeu a correspondência de volta ao carteiro.
- Tome. Abra e leia para mim.
            “O que?!” Foi exatamente isso que, espantado, o outro exclamou:
- O que?
            O retorno veio entredentes, num tom explicitamente imperativo:
- Abra e leia para mim.
            Não foram mãos que reouveram a correspondência, mas puro tremor. O carteiro hesitou em abrir aquele envelope amarelado. A ordem, porém, ainda lhe ecoava nos ouvidos. Destruiu, por fim, o lacre, retirou um papel dobrado em quatro. Desdobrou-o devagar. Houve cheiro de sândalo em volta.
- Leia... – ciciou a viúva. Um tom surpreendentemente lascivo. Ela sabia perfeitamente o que estava para ser lido.
            E o carteiro iniciou uma leitura lenta:
- Minha amada flor-frágil... Continuo de onde parei na última carta. Continuo daquele ponto estranho e tão querido: meus desejos. Eu escreveria todas as cartas do tempo para discorrer sobre o desejo que escorre por mim...
            O carteiro parou de repente. Fez ar de quem achava aquilo tudo absurdo.
            E a viúva, quase num arfar:
- Leia...
            Ele prosseguiu:
- O desejo que escorre por mim feito suor. O que molha em mim este suor? Para onde escorrem essas gotas? Escorrerá por que reentrâncias minhas?... Tu sabes o que em mim se umedece. Tu sabes muito bem que suo por ti. Por causa dessa tua perturbadora e simples lembrança. De ti talhada nesse teu corpo. Tu sabes... Tu sabes que escrevo essa carta nu!
            Um grunhido da viúva, um olhar quente do carteiro.
- Deitado na cama, o travesseiro por apoio, escrevo nu. Flamejado pela visão que guardo nas retinas. A visão da tua nudez – o olhar correu pelo vestido preto, a sua frente. Tecido denso sobre um busto que subia e descia numa respiração desmedida. Tecido que subia até o pescoço de sua dona e descia ventre abaixo, cobrindo tudo miseravelmente – Tudo da tua nudez eu conheço. Mas é como se eu não conhecesse nada, pois quero sempre admirá-la qual fosse pela primeira vez. Admirar o que só eu sei.  Pois só de mim sabe o arrepio dos teus poros...
            A viúva levou a mão ao pescoço. Parecia sufocada. Os dedos desceram pelo colo, fugiram pelos seios, caíram pelo ventre, indo embora...
- Só de mim sabem os teus seios, o teu ventre, as tuas virilhas...- Um mirar que ia da carta à viúva num frenesi quente – Tenho saudade do teu mistério. Do mistério que só que rocei. Mas toda saudade é vil e vã. Pois não posso passar a língua na saudade. Não posso saciar minhas carnes com a saudade. Porque a saudade não me traz gozo.
            A viúva – uma lágrima resvalando pela face – ergueu-se de repente. Aproximou-se do carteiro, arrancou-lhe a carta das mãos e determinou:
- Quero que você mate a saudade que sente meu marido morto. 
            E num instante elétrico, ela se retirou avidamente do vestido preto que a prendia. Pôs-se nua. O carteiro, fremindo, também foi ágil em livrar-se de suas roupas. Assim, os dois se uniram. E o assoalho conheceu o peso e a ginga de seus corpos atados. Gemidos, fúria, desatino...
            Após o sexo, ainda no chão, desfeitos um sobre o outro... o casal ria de satisfação. E coube a mulher confessar:
- Você foi perfeito dessa vez.
            O homem, totalmente alquebrado, gostou de escutar aquilo:
- Fiz tudo direitinho?
            A outra mordeu os lábios antes de responder:
- Mais do que direitinho. Você parecia um autêntico carteiro assustado – gargalhadas – E eu? Convenci como viúva?
- Nossa! Até me deu vontade de morrer de verdade. Esse teu vestido preto faz a gente sentir vontade de cometer assassinato.
- Pervertido!
- Eu, pervertido? A idéia de tudo isso foi tua!
            Um ansioso beijo na boca. Sofreguidão unindo língua com língua
- Vamos embora – ordenou ela, regozijada com toda aquela loucura – os donos da casa podem chegar a qualquer momento!

PARA VER CURTA METRAGEM BASEADO NESTE CONTO, ACESSE:

sábado, 11 de dezembro de 2010

É QUE PROSTITUTAS NÃO BEIJAM NA BOCA

Entre o criado-mudo e a porta, luz de lua e reflexos oscilantes do letreiro de neon. Mistura de brilhos lançada pela janela, ao fundo.
            Lentamente, o roupão escorregou e o corpo de Madalena revelou-se nu. Seios de mulher sofrida, um sexo farto e sempre acolhedor.
Ainda que diante de tudo aquilo, sentado à cama, sob nesgas de sombra, o homem fixou seu desolado olhar somente nos lábios densos da prostituta...
E ela veio ao seu encontro num andar moroso, pleno de uma sensualidade forçada e até patética. Ela veio, imperiosa, entediada. Veio e estagnou-se em frente ao cliente.
O homem ergueu-se. Os lábios densos que fitava. Umedeceu os seus próprios. Ergueu-se apenas para se lançar sobre aquela boca de mulher da vida. Queria beijá-la. Queria. Precisava.
            Pondo o antebraço diante do corpo, Madalena bloqueou o avanço do outro.
            Ela:
- O que é isso?!...
            Ele:
- Quero beijá-la... É só por esse motivo que estou aqui. Quero beijar-lhe a boca.
- O que?!...
- Nada mais me interessa... Quero só um beijo.
            A mulher recuou, aviltada.
- Escuta aqui, meu amigo, eu sou uma profissional. E, caso você não saiba, nós fazemos tudo... Tudo!... Menos beijar na boca.
- E por que?!...
- Porque não existe nada mais íntimo do que isso!... Nada!... Só a quem amamos, beijamos na boca.
            O homem parecia aflito.
- Você não entende?... Isto é muito importante para mim!... Vim até você apenas por esta razão!... – baixou a cabeça, engoliu em seco, soergueu o rosto – É que eu nunca... Nunca beijei uma boca.
- Você... nunca?!... – um riso nervoso – Ah, conta outra!...
            O indeciso reflexo de neon fez ficar lilás a lágrima que rolou pela face do homem.
- Eu nunca beijei uma mulher na boca. E tenho pouco tempo para realizar esse desejo. Amanhã, eu vou me... Escute, não posso deixar este mundo para trás sem experimentar isso.Você não entende?... Tenho de saber o que é um beijo na boca, hoje! Amanhã, esta vida não mais me existirá...
            Ali, vestida somente pelo luar, entre o criado-mudo e a porta, ali, Madalena desconcertou-se, estremeceu. Era só o que lhe faltava! Um suicida!... O homem lhe dizia que simplesmente se mataria no dia seguinte, todavia, hoje, precisava beijá-la na boca!... Ali, com pele de luz lunar, Madalena fitou seu cliente de modo desolado. Algo em seu peito doeu.
            A súplica do coitado:
- Por favor... deixe-me saber o que é isto que eu nunca soube... antes que nunca mais possa sabê-lo!...
            Então, Madalena decidiu se prostituir de fato. Com extremo cuidado, tomou entre as mãos o rosto de seu cliente. Uniu o corpo despido ao dele, trêmulo. Fechou os olhos e levou seus lábios vividos ao encontro daqueles, tão virgens.
O beijo. Sim, o beijo. Arabesco de línguas, alquimia de hálitos, salivas que se misturam e se decantam, que se condensam e se destilam. Úmido atar de sopros vitais. O beijo. Boca trancada em boca, abrindo almas.
            A prostituta afastou-se, de súbito. O semblante fingindo frieza. O íntimo remexido...
- Se era isto... está feito! Agora, vá!... Vá de uma vez para sua morte... E não pense em pagamento!... Por beijos na boca nunca se paga!... Vá!... Suma da minha frente!...
            O homem, um riso. Antes de ir, beijou a mão de sua mestra...
- Este que você está vendo há de morrer tranqüilo. – Disse e se foi.
            E, depois que tudo aquilo era ido, Madalena vestiu o roupão, deitou-se na cama e se afogou numa estranha agonia. Por Deus, simplesmente deixara aquele homem partir para o suicídio. Nada fizera para tentar demovê-lo de tal idéia. Apenas... tão apenas... beijara-o. Sim, beijara-o e o deixara partir. Aquele beijo na boca... Podia, ao menos ter conversado com o infeliz. Deixara-o partir...
Era uma pecadora! Não porque vendia sexo, não porque prostituíra a boca, beijando um estranho. Mas por haver permitido que um fraco se entregasse à morte. Era uma pecadora!...
Dias se passaram e Madalena naquela angústia. O suicida que deixara partir. Fora omissa, pecadora...
Dias se passaram... Agonia. Perdão. Precisava pedir perdão a Deus! Dias. Passou dias se corroendo.
Já era noite alta quando Madalena invadiu a igreja de um bairro qualquer da cidade. Vestido preto, xale escuro sobre a cabeça, caiu de joelhos ante o altar. O pesado remorso fez com que chorasse!.
A voz do pároco surgiu atrás de si:
- O que tens, filha?... O que te faz vir aqui nesse estado?
Cabisbaixa, a prostituta virou-se na direção do padre. Não quis encará-lo. Tomou-lhe a mão e beijou-a com sequioso respeito.
- Perdoe-me, padre!... Perdoe-me!... Deixei que um homem morresse...
O jovem pároco agachou-se e, com a ponta dos dedos, fez erguer o queixo de Madalena. Mesmo com o susto imenso que a outra tomou, ele disse mansamente:
- Aquele homem precisava morrer – Um riso doce – Tu apenas confirmaste a vida nova que eu queria para mim, mulher. Tens contigo... a fé da minha eterna gratidão...
Um beijo suave no rosto da prostituta. O conforto do abraço do padre.


domingo, 5 de dezembro de 2010

FOI PRECISO QUE JOANA DESCESSE AO PORÃO...

Conto do livro O SUMÁRIO DA METÁFORA

            Joana ensaiava entrar na casa. Tentava, bem que tentava. Mas era tão difícil. No semblante, toda a tradução de como se sentia. Oca. Sim, tinha-se oca, absolutamente vazia.
Como nada havia que os impedisse, Paula e Michel invadiram o lugar com algazarra, ansiosos pelo novo. Para os dois, aquele prédio não passava de um hoje qualquer. Já para Joana...
            Lá, presa à porta, foi fria:
- Ei, ei... vocês!... Não quero saber de bagunça. Peguem suas coisas e subam. Os quartos ficam lá em cima.
            Questionar seria inútil. Paula e Michel obedeceram.
            Joana entrou, por fim – ou a casa a teria engolido?!...
Correu a vista pelos espaços em volta... Ódio, repulsa... Os ambientes em volta: aquelas salas, a cozinha, o corredor que levava ao porão...
O porão...
Tanto que fugira daquela maldita residência. Brigas. Revolta. Quinze anos e já estava longe da família, perdida no mundo. Loucuras. Outras cidades. Loucuras. Outros Estados. Loucuras. Aquela casa de novo?!... Viver é dar voltas em torno de um grande nada, concluía, exausta. O esforço de uma vida inteira para se ver livre daquele lugar resumia-se agora a ter de voltar. Voltar: verbo de conjugação cretina...
O porão...
            Foi logo no final de seu primeiro dia de retorno que Joana reuniu forças e desceu ao porão. Tinha de fazer aquilo. Por que? Deus o saberia. Apenas precisava fazê-lo.
            Aquela escadinha em direção à penumbra. Paredes mais próximas. Falta de senso direcional. Vertigens. O coração ameaçando rasgar-se...
            O porão fez-se ambiente em torno de Joana qual uma garganta voraz. Uma fome tão antiga. Tantos anos tinham passado, corrido, rasgado o existir...
            Escuro. Escuro profundo. Profunda estranheza. O incômodo de estar com os olhos tão abertos e nada ver.
            E o começo de tudo, na verdade, foi muito rápido. Houve tempo somente para que Joana tomasse fôlego...
            Doce, uma voz nasceu do meio das sombras:
 - Por favor, não se assuste...
            Joana e um grito seco.
            Ora, um “Por favor, não se assuste” vindo da escuridão era, no mínimo, ironia!
- Que é isso?! Quem está ai?
- Não... Não tenha medo... Por favor, não tenha medo...
            Escuro. Escuro profundo. Uma mulher! Havia uma mulher ali dentro!...
            Belicosa, Joana tateou o ar. Onde estavam as paredes?... Um móvel?... Um objeto com que pudesse se defender?!...
- Quem está aí?... Eu...
- Acalme-se! Posso explicar! Acalme-se!... Quando a vi chegar, hoje de manhã, fiquei muito feliz...
            Joana tentava deslocar-se pelo recinto, mas... aquela escuridão!... Escuro profundo!...
- Eu vou chamar a polícia!... Vou chamar a polícia, einh?!...
- Escute!...
- Eu não tenho que escutar coisa alguma!... Quem é você, afinal de contas?...
- Joana, pare!... Pare e ouça!...
            O eco: “Joana, pare!... Joana!... pare!... Joana... Joana... Joana!...”
            A dona da casa fremiu dos pés a cabeça. A voz, um fio:
- Como sabe meu nome?...
            Um risinho maroto perdido por entre as trevas...
- Sei porque a conheço muito bem... Ou, pelo menos, conhecia!... É que faz tanto tempo!...
            Joana, um mal-estar na alma. A compreensível sensação de que havia algo de muito insondável naquela situação.        
Passos incertos, conseguiu retornar a escada. Ao pisar no primeiro degrau, porém, entreviu a porta lá em cima fechar-se por mera e total mágica. O susto lhe foi tal, que se desequilibrou e caiu.
Sem a menor cerimônia, pôs-se a gritar:
- Paula...! Michel...!
            E a voz de mulher ressurgiu com inquietante brandura:
- Não há o que temer, Joana... As coisas estão lhe parecendo esquisitas, eu sei... Mas nós precisamos conversar e, depois disso, tudo será melhor.
- Paula!... Michel!...
- Não adianta chamar por seus filhos... Eles não vão escutar!
            Movimentos à esquerda, movimentos à direita. Em meio a seu pânico, Joana podia notar que a desconhecida se mexia pelos espaços escuros. E, Deus do céu, por mais que arregalasse os olhos, por mais que se esforçasse, não conseguia vê-la nitidamente.
- Socorro!... – respiração pesada – Alguém me...
A voz – tão familiar, tão enigmática. – , de cândida, tornou-se cortante:
- Cale-se!... – e, vindo sabe-se lá de onde, um bofetão cauterizou o rosto de Joana.
            Para nossa amiga, esgotada pelo pavor, restou o nada original consolo do desmaio.

*                                *                                *

- Sente-se melhor? – a indagação veio das sombras.
            O que? Hã... ? O porão...!  Pesadelo... Tivera um pesadelo? O que?!...
            Joana ressuscitou aos poucos. Não teve ânimo imediato para deixar fluir seu desespero. Descobriu-se sentada sobre uma espécie de caixote. Circundando-a, um facho de luz que partia de algum ponto no teto...
            Retrucou, cansada:
- Sim...
             O vulto – ora num canto, ora noutro... – murmurou amavelmente:
- Que bom... Fico contente, minha amiga.
            Pesadelo... Estava tendo um pesadelo?... O que?... Hã?
            Mesmo sonolenta, Joana ensaiou alguma ira:
- Que maldita história de amiga é essa?... Quem é você, droga?!...
            E foi como se a estranha mulher se transformasse num vento quente a correr pelos entornos.
- Ah, esta raiva que você sente de tudo, não é, Joana?! Este furor...
- Olha, eu já perdi toda minha paciência com essa palhaçada! Ou você se mostra, ou eu...
- É triste ter ódio do mundo, minha cara, ódio da vida...
- E quem lhe deu o direito de julgar o meu jeito de ser, o meu...Ora, essa é muito boa!
- A vida pode ter sido cruel com você em algum momento... mas lhe deu, por exemplo, filhos maravilhosos...
- Filhos maravilhosos!... – um forjado desdém.
- Filhos excepcionais! Que te amam!
- Eles não ligam a mínima para mim!...
- Você é que despreza o amor que eles lhe oferecem, Joana!... Os dois não têm culpa de nada!
            Culpa? Do que aquela criatura estava falando? Será que...? Não!... Era impossível!...
            Que pesadelo mais real! Era real demais!
            Recobrando o bom senso, Joana resolveu voltar ao cerne da questão:
- Espera aí! Vamos esclarecer, de uma vez por todas, esta loucura! Estou presa num porão, discutindo minha vida com alguém que demonstra me conhecer profundamente e eu sequer consigo ver o rosto dessa pessoa!... Que brincadeira mais ridícula é essa?
            Tentou levantar-se e teve a impressão de que uma amarra a prendia àquele caixote...
            Um pesadelo... Aquilo só podia ser um pesadelo!...
- Nada disso é brincadeira, Joana! Nem um pesadelo!... Nada disso!...
            O pânico arranhando as costas de Joana... A voz quase não era mais voz:
- Por favor... saia das sombras. Deixe-me ver seu rosto.
- Ainda não é a hora...
            Raiva: 
- Vem cá, sua infeliz. Por acaso isto...
- Infeliz?! – um tom magoado – Vou dizer o que eu acho, minha cara. Já é chegado o tempo de curar este seu ódio interior. Eu sei de onde vem esta fúria em sua alma. A explicação para o eterno corte que você carrega está por aqui, não está, Joana?... A razão está aqui, perdida dentro dessa casa... Escondida por esses recintos... Enclausurada, há anos, neste porão!
            Joana estremeceu...
- Você não está se referindo a...? Não!... Não pode ser...
- É preciso exorcizar esse fantasma, minha amiga!...
            Um pranto doentio estraçalhou os olhos, os dizeres, o espírito de Joana.
- Cale-se! Não ouse...
- Se você tivesse pedido ajuda a seus pais, contado o que estava acontecendo...
            Joana transtornou-se:
- Meus pais?... Ora, não me faça rir!... Eles sabiam que eu estava sendo...
- Não diga tamanha besteira! Eles morreram  sem entender o motivo pelo qual você os odiava tanto!...
- Mentira! Eles sabiam muito bem!... Sabiam!
- Eles nunca suspeitaram! Pelo amor de Deus!... Edgar era irmão de seu pai! Seu tio, Joana!... Como eles podiam imaginar que aquele monstro lhe faria um mal tão imenso?!
            A dor do passado machucou tanto Joana, que seu corpo ardeu, curvou-se numa sofreguidão sem fim.
            O vulto – longe e perto, perto.. longe... – prosseguiu, com contraditória mansidão:
- Foi  aqui, não foi?... Por isso você teve que descer a este porão... Para ver se já era capaz de enfrentar, de afugentar estas lembranças tão dolorosas. Aquela tarde jamais se apagou na sua memória, não foi, Joana? O que lhe aconteceu, naquela tarde, não deixou nascer a mulher serena e doce que você deveria ter sido. Aquela violência transformou-a neste caco de si mesma, neste amargor enorme que perambula vida afora...
            Joana tapou os ouvidos e baixou a cabeça, enlouquecida de angústia. Não queria escutar. Não podia escutar!...
- Você está morta... A verdade é que você está morta... Perdida de si mesma... destruída...
- Chega!...
- Aqui, dentro destas paredes, ficou trancado tudo aquilo que seu âmago tinha de bom... Ao machucá-la, neste porão, Edgar arrancou de dentro de você algo que lhe era essencial:  você própria!...
- Por favor...
- Já é tempo de consertar tudo isso...
            A estranha se aproximou.
Então, cabisbaixa, Joana recebeu nos ombros um afago profundamente tépido. Depois... um beijo gentil magicou-lhe o rosto.
- Eu lhe garanto – reafirmou o vulto em seu ouvido, um sussurro reconfortante – que as coisas serão diferentes a partir de hoje...
            Sob o facho de luz, Joana e a estranha.
Ao reerguer a cabeça e contemplar, por fim, o semblante de sua interlocutora, o desnorteamento do mundo inteiro desabou sobre Joana. Estremeceu. Esmoreceu. Acordou de um pesadelo, afogou-se num sonho estapafúrdio...
            Diante de si, havia uma mulher trajando as mesmas roupas que trajava. Uma mulher que tinha a sua altura, os seus cabelos, os seus olhos, a sua boca... Uma mulher surpreendentemente idêntica a si própria. A não ser por uma extraordinária diferença: tratava-se de uma Joana bonita, leve, feliz...
            Ao mesmo tempo em que nada entendeu, tudo ficou claro em sua mente.
- Quer dizer que você sou...
            A outra riu:
- Eu sou a Joana que ficou presa, durante anos, aqui em baixo. Sou a verdadeira Joana!... Você é apenas o reflexo de um sofrimento meu.
            Uma estranha emoção.
- Como eu quis ter sido você...
- E como eu a esperei. Como aguardei seu retorno... Como ansiei por este dia...
- O que nós... – um misto de riso e lágrimas na fala. – O que faremos, agora?
- O que deve ser feito – um misto de lágrimas e riso. – Eu subo...e  você fica.
            A Joana amarga suspirou com pesar. Ou seria alívio?
- Faz sentido... Sempre tive a incomoda sensação de que o mundo lá de cima não me pertencia... Sim...  Aqui é o meu lugar.
- Enquanto que o meu verdadeiro mundo é o lá de cima.
Ambas fitaram-se com hipnótica cumplicidade e misteriosa paixão.
A Joana que passara tantos anos presa beijou as faces da outra, acariciou-lhe os cabelos, despediu-se e dirigiu-se à escada que levava à saída, que levava à liberdade, que levava à paz.
            E a Joana que ficou no porão regozijou-se, em paz consigo mesma, encantada com o breu que a cercava, encantada com aquela pesada solidão que, sorridente, lhe prometia fazer companhia até o final dos tempos...

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

LADY B - Primeira Parte


Conto da série MITOS NO ASFALTO, projeto que traz para a urbanidade figuras da mitologia amazônica.

           Bem, essa é uma daquelas histórias que usam o recurso nada original de mostrar primeiro parte do fim para depois voltar ao início. E a cena que temos dos momentos finais da trama é a de Evaldo diante de um barraco de madeira, na periferia de Macapá. Nas mãos do rapaz de vinte anos, a carta que prometera entregar a um certo alguém. Em seus ouvidos, o brado desesperado de Lady: “Eu tenho um amor, vocês estão me ouvindo?... Eu tenho um amor!... É por Adão que estou fazendo tudo isso!... Por Adão!...”. A respiração densa. O corpo cansado com o turbilhão de emoções que vivera. Finalmente conheceria o amante da criatura que, em um único dia, mudara sua vida para sempre. O amor da criatura que, por ser tão boiúna, fizera tantos preconceitos seus se afogar.

Agora, qual num risco de relâmpago, começamos
como de fato se deve começar. O real ponto de partida da nossa narrativa é a chegada de Evaldo ao banco, naquela abafada e sonolenta manhã macapaense. Agências bancárias, pensava ele com arrastada raiva, são uma irritante metáfora dos rios amazônicos: ambientes para o viver de várias cobras. As filas intermináveis –  circundantes, sinuosuas – traziam-lhe à memória a imagem das serpentes. E o desagrado por ter de se submeter àquelas filas lhe inundava a língua com um tal gosto de veneno. Mas era apenas um qualquer, dizia a si mesmo. E a vida de um qualquer se resume a ter de se deixar picar pelo tédio do conformismo.

 Num súbito, porém, o surpreendente decidiu dar um bote certeiro na monotonia dos que se encontravam naquela agência. Pelos dentes do estardalhaço, um inusitado incidente chamou a atenção de todos para a porta eletrônica do banco.

- Isso é preconceito, meu filho!... Preconceito! Crime – A voz de falcete, tom feminino criado pela vontade de ser feminino – Eu tenho o direito de entrar com os meus pertences, viu?! ...

            E o que se passava era isso: do lado de fora da agência, um travesti negro com quase 1,80 de altura. Figura absolutamente extravagante. Além da altura natural, sapatos com saltos finíssimos de dez centímetros. Maquiagem pra lá de forte, peruca ruiva, vestido justo azul celeste e todo o tipo de bijuterias. O motivo do alarido? O sistema de alarme da porta giratória estava impedindo a entrada do personagem com sua indefectível bolsa tiracolo pink.

- Eu não vou tolerar isso – Era possível ouvir a indignação da criatura mesmo para além do denso vidro da porta – Se vocês vierem com esse papo de me revistar, eu vou dar parte dessa pocilga por preconceito, eihn?!... Eu vou, eu vou!...

            Evaldo começou a se divertir com tudo aquilo. Os trejeitos ensandecidos do travesti. O desconcerto do segurança do banco que não sabia se fugia ou ficava em seu posto. O desespero do gerente a gesticular para que o segurança liberasse de qualquer jeito a entrada do exuberante cliente. O nosso protagonista precisou conter o riso. Divertia-lhe a patética comédia do cotidiano.

            O perrengue foi resolvido com o segurança recebendo a bolsinha pink por uma daquelas aberturas por onde se deixa celulares e chaves. O travesti entrou, triunfante, andar malemolente, no semblante um ar superior de “tá, meu bem?”. Com a bolsa novamente em seu poder, tomou para si um dos rabos de fila e sentenciou:

- Gentinha tola...

            Então, seu olhar e o de Evaldo se encontraram num deslizar. No fundo das retinas do travesti, uma estranha tensão, um medo secreto. Nas pupilas do outro, o congelar-se de um instigante detalhe: todas as bijuterias que o espalhafatoso recém chegado usava tinham a figura da cobra como inspiração. 

            Assim, Evaldo fixou-se no pesado anel de ouro com forma de serpente que o travesti mantinha na mão direita. E viu quando essa mão se levou vagarosamente ao zíper da bolsinha pink. Viu quando invadiu com silêncio a tiracolo. Viu quando tirou do interior da bolsa uma pequena pistola prateada...

            Arma em punho, postura inimaginavelmente belicosa, o travesti anunciou num tom viril e explosivo:

- Isso é um assalto, porra!... Todo mundo quieto... Ninguém me invente de fazer nenhum movimento besta – a mira da arma girando em torno do ambiente – Se vocês forem espertos e bonzinhos, isso vai acabar rápido e numa legal...

            As filas-cobra não eram mais filas-cobras, e sim um ridículo amontoado de pavor pelo chão. O burburinho, os gritinhos de pânico, os choros que já se faziam ouvir. Todos pelo piso, rendidos, entregues.

            O travesti girando em seu próprio eixo sobre os saltos altos finíssimos. A pistola engatilhada e firmemente empunhada.

Brados trovejantes:

- Eu tenho um amor, vocês estão me ouvindo?... Eu tenho um amor!... E é por Adão que estou fazendo tudo isso!... Por Adão!...

            Todos na agência jogados pelo piso. Todos. Menos Evaldo.

            O giro do travesti parou na direção do nosso protagonista. A mira se fechou em seu peito. Seu olhar e o do travesti outra vez se ataram.

- Qualé, cara?... Vai querer me desafiar, é isso?... – Fragilidade e agressividade juntas no falar – Te joga no chão, cacete, anda!... Te joga!

            Alguma coisa, porém, fez Evaldo se manter impassível. Talvez a frase. A incongruente frase: “É por amor a Adão que estou fazendo isso...”. Ergueu o queixo e sustentou com ousadia o intimidativo encarar de seu inquisidor.

            A fúria e a invisível delicadeza do travesti:

- Anda, sujeitinho!... Mete essa cara no chão, se não eu vou atirar em ti! Ou eu não me chamo Lady B.!

Continua...
 
* Conto inspirado na lenda da Boiúna.

LADY B - Segunda Parte


          

            O algoz e a presa se entreolhando... A bala poderia ser disparada a qualquer momento e acabar com todos os momentos de Evaldo. Num redentor momento, todavia, um gemido feminino seqüestrou a atenção de Lady B.

            Caída a um canto, absolutamente ofegante, uma grávida. Uma dezena de pessoas prostradas pelo assoalho, prantos, temores.... Só aquela mulher, porém, pareceu despertar um algo no travesti. A extravagante criatura se esqueceu completamente da troca de olhares com nosso protagonista, abandonou de todo a empáfia e a brutalidade.

Evaldo finalmente se acocorou para acompanhar a lenta cena que se seguiu.

            Arma arriada, andar rebolativo e vagaroso, Lady B. foi-se até a gestante e se agachou a sua frente. Uma estranha emoção tomou conta das duas personagens. O travesti fez a mão pousar com suavidade sobre a voluptuosa barriga que denunciava tanta vida nova. O anel com formato de cobra sobre aquela gestação. A futura mãe pareceu sentir um profundo prazer com aquele toque.

            A enigmática pergunta do assaltante:

- São gêmeos, não são?...

            Indaiá, a mãe, respondeu num timbre quase orgástico:

- Sim... Uma menina e um menino...

            E a mão que estava sobre a barriga, com suas unhas pintadas de vermelho berrante, migraram até o rosto da grávida para um afago doce. Lágrimas rolaram pelos rostos de Indaiá e de Lady.

            Num súbito, o travesti se pôs outra vez em pé. No semblante, lá estava de regresso o ar intimidador. E a ordem que emitiu foi sibilante:

- Te levanta, mulher! Vai embora daqui, vai!... – A grávida hesitou – Anda, criatura! Levanta essa barrigão daí e toma o rumo da reta!... Caminha!

            Não foi preciso mais nenhuma frase. A gestante, mesmo com alguma dificuldade, ergueu-se, correu  para a porta giratória e se foi. Lá fora, o banco já estava cercado pela polícia, imprensa a postos, o circo dos curiosos.

            Lady B. ainda estava reaprumando definitivamente os ombros quando um outro evento inesperado se explicitou. O urro de um dos reféns ecoou pelo interior da agência:

- Eu não vou admitir ser assaltado por uma bicha como essa!...

            Com um riso irônico nos lábios, o travesti girou nos saltos procurando o inteligente autor do desacato. Achou-o acuado na parte central da agência. Um sujeito barrigudo, com seus quarenta e cinco anos, bigode farto, blusa aberta, peito cabeludo à mostra, a cara puro suor frio...

- Como é que é, tiozinho?

- Tiozinho uma pinóia, seu viado!

            Evaldo acompanhava tudo com absoluta excitação.

            O plec-plec dos saltos de Lady se aproximando do inconformado refém. A imensidão do travesti diante da postura diminuta do outro.

- Garotão corajoso, hein?!... Tem medo de morrer não, né?

            Mesmo nitidamente trêmulo, o homem resolveu continuar desafiador:

- Eu tenho é nojo de um tipinho como o teu. Era só o que me faltava! Eu, um mecânico que trabalha de sol a sol, um pai de família honrado, preso num banco por causa de um idiota que, além de fresco, ainda é pre...

            A intervenção entredentes do travesti:

- Lady B., meu bem!...Olha o respeito!... Me chame de Lady B.! Lady Boiúna! Mais perigosa do que a própria Cobra Negra dos rios!...

- Uma bichona!... Tá querendo dinheiro pra que, einh?... Pra comprar absorvente íntimo?

            A gargalhada do próprio travesti. Silêncio absoluto no interior do banco. O silêncio de Evaldo. A pseudo-pândega de Lady silenciando. O ódio nos olhos do assaltante. Ele em pé, gigantesco. O refém, encolhido rente ao piso.

A mira da pistola concentrou-se angustiantemente na testa do fulano.

- Eu quero dinheiro, meu senhor, quero sim. Mas é para cumprir uma promessa que fiz ao meu amor. O senhor sabe o que é ter um amor?... Alguma vez na vida já sentiu vontade de destruir o mundo apenas por amor a um ser humano?... – A respiração densa do agachado, o suor frio cada vez mais grosso – Fiz uma promessa ao meu amado Adão e vou cumprir nem que eu tenha que meter balas em cabeças cretinas como a sua!...

            Tensão plena e irrestrita. O tiro por sair, por sair... E o que acabou saindo foi uma nova gargalhada de Lady. Sempre surpreendente, o travesti limitou-se a levar as mãos aos quadris e sacudir os ombros com propositada afetação:

- Ah, meu bem, eu não vou gastar minha munição contigo, não. Mas não vou mesmo, docinho! Sabe por que? Por que cabeças como a tua já estão atravessadas pelas balas mais imundas que existem: a ignorância e o preconceito!...– E quando fazia menção de se afastar, tornou a se dirigir ao refém, reconduzindo-lhe a mira da pistola – Mas uma liçãozinha tu vais levar. Vai, sim!... Anda! Se arrasta até aqui!... – Com o cano do revólver, indicou o rumo dos sapatos que calçava. O altíssimo salto direito tamborilando o assoalho – É isso mesmo!... Vem cá!... Tu vais aprender a respeitar as bichonas!... Quero sentir um beijinho teu no meu pezinho, querido!... Bem carinhoso!...

            A transpiração caudalosa do humilhado. A fúria e o medo em seu rosto. A valentia tufada no peito, porém, teve de correr às léguas no que Lady reengatilhou a arma e deixou claro que dispararia em questão de segundos.

            Em questão de segundos e aos prantos, o poderoso pai de família curvou-se ante a “superioridade” do travesti e beijou-lhe demoradamente o pé.

            Numa rabissaca entediada, Lady empurrou o vencido para escanteio.

Empertigado, o assaltante decidiu mudar o ritmo de tudo aquilo. Ágil e vigoroso, esvaziou uma lixeira qualquer, tomou para si o saco preto do lixo e rumou aos caixas. Com a arma sempre friamente empunhada, obrigou os atendentes a jogar em seu coletador todo o dinheiro que tinham nos guichês. Saco empanturrado, voltou ao centro da agência e girou nos calcanhares. Precisava de um escudo humano para poder sair do banco... Quem? Quem? Quem?... Deparou-se com Evaldo em pé, esperando para ser escolhido.

- Tu mesmo, amiguinho! Vem comigo!... – O sutil riso de prazer do eleito – Vamos, rápido, vamos!

Com Evaldo preso numa chave de braço diante de si, Lady se preparou para um dos momentos mais delicados de sua ousada ação: a fuga. Antes de sair, entretanto, permitiu-se mais um lance de ironia. Tirou do saco de lixo um monte de dinheiro e arremessou-o na direção do mecânico que tentara constrangê-la.

E o recado que emitiu com total masculinidade foi simplesmente cruel:

- Toma aí, tiozinho. É pra tu comprar de volta um pouquinho de dignidade.

            Às gargalhadas, levando consigo um elétrico Evaldo, Lady B. lançou-se aos riscos que lhe esperavam lá fora...

Continua...
 
* Conto inspirado na lenda da Boiúna.