domingo, 6 de fevereiro de 2011

CONCHAVO DE UM AMOR SÓ TEU

Enquanto vivia a angústia de esperar o elevador, Mateus não parava de repetir mentalmente que detestava aquele lugar. Odiava hospitais. Estava ali porque fora inevitável. Um velho amigo doente, sabe-se como é... Abominava hospitais. O excesso de brancura, a massacrante volúpia do éter. Para piorar, aquele elevador sonolento. Espera desgraçada.
            Resolveu dar à mente outros pensares. Enfiou a mão num dos bolsos e dali tirou uma caixinha. Abriu-a. Sorriu. O anel que comprara para dar a Cíntia. O anel de noivado.
             Maldito elevador que não vinha...
            Apoderou-se da aliança. Brincou com ela por entre o polegar e o dedo indicador. A jóia fluiu daqui, de lá, exibiu-se, cintilou e subitamente resolveu escapulir. Foi tudo rápido demais. O anel tocou o chão e de pronto saiu rolando, correu, debandou. Encontrando entreaberta a porta de um quarto em frente, perdeu-se lá por dentro.
            Apartamento 634. Mateus fitou a porta mal fechada. Soltou um palavrão entredentes. Olhada para um lado do corredor, depois para o outro. Não havia enfermeiros por perto. Tomou coragem. Dirigiu-se ao quarto. Afastou um pouco mais a porta, esquadrinhou o interior do recinto. Somente a luz de um abajur. O resto: um tudo mergulhado na penumbra. Uma cama, uma velha mulher desacordada, soro atado a seu pulso...
            A porcaria do anel devia ter ido parar debaixo da cama.
            Mateus entrou. Passos leves. Cuidado. Era preciso muito cuidado. Passos leves. Agachou-se junto ao leito. Penumbra. Infernal penumbra. Somente a luz do abajur. Tateou o chão abaixo do leito... Ufa!... Aleluia!... Lá estava sua querida aliança!
            Então, um sussurro inesperado:
- Por que não me disseste que virias?...
            Mateus ergueu-se num pulo.
A velha senhora acordara. E ela prosseguiu:
- Ainda bem que estás aqui!... – lágrimas num olhar espantado, mas exultante – Deus ouviu minhas preces!...
            Atrapalhado, constrangido, gago, Mateus retorquiu:
- Não, não!... A senhora deve estar me confundindo...
            A outra sorriu. Um filete de choro acariciou-lhe as rugas.
- Eu jamais te confundiria com ninguém, meu querido!
- Decididamente a senhora...
- Escute!... Vieste para me ouvir admitir, não foi isto?... Pois bem, eu digo... Digo, digo e digo: eu menti!...
- Senhora, é que...
- Menti, meu querido... Durante todos estes anos, tenho sofrido tanto!... Cinqüenta anos!... Meu Deus, cinqüenta anos!... Naquele dia, naquela tarde... Eu menti!... Tive medo... Eu era tão jovem!... Nós éramos tão jovens... Mas cinqüenta anos se passaram!...
- Não!... Perceba... Está havendo um grande...
- Eu disse que não te amava!... Cheguei a jurar!... Menti... E tive uma vida inteira para me arrepender!...
            Mateus esmoreceu. O coração aconselhou: “Desarme-se. Ouça o que esta velha dama tem a falar”. Decidiu atender. Concordou em deixar para depois o afã de ir embora.
            A voz da enferma era morna, quebradiça e, ainda assim, tão intensa, tão penetrante:
- Eu cheguei a jurar que não te amava... Agora, eu juro a verdade... – lágrimas num olhar enternecido, doce, pungente – Minha alma fez conchavo com um amor que foi só teu!... Minha alma...  Minha alma jamais se encantou com outra música que não este amor!...
            A penumbra e Mateus ali parado, envolvido, emocionado. Lágrimas num olhar aturdido.
- Não houve paz em nenhum sorriso que eu tenha dado sem ti... Eu juro!... Na verdade, em mim nunca houve sorrisos sem ti... Posso ter fingido, disfarçado... O fato é que o último sorriso sincero que dei foi em resposta ao último sorriso apaixonado que me deste!... Eu menti naquela tarde... Foste embora e nunca mais te vi!... Se voltas agora, é para que eu te jure: minha alma fez conchavo com um amor que foi só teu!...
            Sem entender o que estava fazendo, Mateus aproximou-se do leito. Ajoelhando-se, tomou a mão da velha dama para si.
            Lágrimas sobre dois olhares entrelaçados. Estranha cumplicidade.
- Se estás de volta... – ela arfou – preciso ouvir que me perdoas...
            Mateus também arfou. Um falar trêmulo:
- Eu...
- Por favor... perdoe-me!...
            Um riso suave nos lábios de Mateus.
- É claro que eu a perdôo...
- Jure!...
- Eu juro!... Com tudo que há de certo em mim... Por tudo que me traga paz!... Juro!... – lágrimas sobre um sorriso suave – Minha alma também fez conchavo com um amor que foi só teu!
            A penumbra. A luz do abajur. Uma dor no peito. Um gosto de mel na língua. Movido sabe-se lá porque, Mateus acariciou o rosto da velha dama e, com extremo carinho, beijou-lhe os lábios demoradamente.
            No final, a enferma recostou-se nos travesseiros, apaziguada. Virou o rosto para um lado e adormeceu.
            Mateus ergueu-se de súbito. O que, diabos, fizera? Por que ouvira toda aquela história? O que, diabos, fizera? Olhou para um lado, para o outro. Penumbra. O anel que daria a Cíntia ainda em sua mão. Olhou para um lado, para o outro. Abandonou o quarto, afoito, confuso. Um nó na garganta.
            O quarto... A tênue luz do abajur...
            Outra vez sozinha, sem abrir os olhos, a velha dama, enlevada, murmurou:
- Meu querido Mateus... Meu amado Mateus...
            Meia hora depois, a enfermeira de plantão lastimaria descobrir que dona Cíntia, a doce paciente do 634, havia falecido com um estranho sorriso feliz nos lábios.

3 comentários:

  1. Discurso leve, agradável, tom ameno...uma boa leitura pra um dia frio e chuvoso. Amo frases de uma palavra só. Surreal. Intrigante.

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  2. NU Sucesso, meu caro Carlos!
    Seus contos são intigantes que chegam a doer... Rs. Boa, Poeta!
    Abs.
    Benny

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  3. há de se ter muita sensibilidade para escrever assim, tão leve e tão profundo.
    és um sábio conhecedor da alma humana!!!
    parabéns poetinha!!!

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