domingo, 6 de março de 2011

DOM MENINO

Destempero. Nenhuma palavra seria mais perfeita para traduzir o modo como o menino Miguel invadiu a humilde tapera na qual morava com o velho pai. O silêncio silvestre da noite marajoara foi ludicamente quebrado pela ansiedade luminosa do garoto de doze anos:
- Ó só! Ó só! – Repetia entre risos, sacudindo no ar o que parecia ser uma antiga publicação.
            Por trás da vela que lhe servia de amiga, o bom caboclo Sancho interrompeu o trabalho artesanal ao qual se dedicava. Abandonou sobre a simplória mesa à sua frente o meticuloso entalhe em madeira e ergueu apenas o olhar para tentar entender a agonia do filho:
- Doidice é essa, pequeno?
            Coroando sua inusitada chegada, o menino pousou suavemente sobre a mesa a surpresa que trazia consigo.
- Ó que bacana, pai!... É um livro!... Foi um moço que ia passando na estrada aí fora que me deu... – Mesmo à meia luz, era impossível não ver as faíscas de contentamento que pulavam nos olhos do garoto – O moço disse que o nomi do livro é... – Fez esforço para lembrar – Cumé o nomi?... Ah, sim! Dom Quixote!... Isso: Dom Quixote!... Um homi engraçado, sabe pai?... Com uma roupa esquisita... Ele falô pra trazê o livro pro senhô...
            Por trás da vela, o sutil receio no semblante de Sancho:
- Pra mim?... Eras!... Pra que já?
            Sentando-se em frente ao pai, Miguel explicou, enlevado:
- Pro senhô lê pra mim...
            Uma brisa vinda dos rios fez dançar a chama única que iluminava o local. O caboclo Sancho tremeu discretamente. Chorou. Não de modo visível. Chorou por dentro. A inverdade que sustentara por tanto tempo podia ser revelada, ali, naquele instante.
Miguel devia ter uns cinco anos quando perguntara para Sancho: “O que é lê, pai? O que significa isso?”. O velho caboclo, que jamais tinha recebido o presente de entender o mundo da escrita, buscara explicar ao seu modo: “Lê é passá os olho nas letra e falá em voz alta o que elas diz, fio”. Orgulhoso, o menino indagara: “O Senhô sabe lê, num sabe, pai? Meu pai sabe tudo! Num tem coisa que o senhô num conheça, né não?”. Partido pela vergonha de não poder gestar todas as felicidades do filho, Sancho decidira mentir: “Sim, fio. Eu sei lê, sim”. Esses anos todos, sempre que Miguel lhe pedia para “ler” alguma coisa, o artesão talhava com criatividade alguma falação que pudesse convencer o menino. Funcionava. Toda vez funcionava.  
            Mas agora... Agora aquilo!... Um livro!... Um livro era diferente...
- É esse mesmo o nomi do livro, pai? É isso que as letra tão dizendo: Dom Quixote?...
            O outro deitou os olhos sobre o título. A aflição de nada entender...
            Resolveu continuar não desiludindo sua cria:
- Sim. É isso mesmo.
- E o que qué dizê isso, pai? O que qué dizê... Dom Quixote?
            A brisa fria dos rios... O respostar de Sancho se congelou... De repente, teve a impressão de ouvir uma estranha voz masculina cochichar: “O amor paterno sabe ler e explicar qualquer magia...”. Olhou em volta, procurando o autor da frase, mas nada achou. Teria sido uma visagem?
Suspirou e decidiu fazer o que sempre fazia. Reescrever os textos com a voz da intuição:
- “Dom Quixote”, na língua dos índio antigo, qué dizê “O Menino Que Sonha”
- E é?
- É...
- E sonha cum quê, pai?
- Bora lê... Bora lê...
            Com lentidão, Sancho abriu o livro. Uma nova rajada de vento fez a luz da vela estremecer fortemente. Guiado pelo trote da imaginação, o caboclo deslizou a vista pelo mistério das palavras diante de si e fabulou:
- Ele sonha aprendê a lê e escrevê, fio!... Ele botô essa idéia na cabeça dele. Subiu no lombo dum cavalo desses daqui do Marajú e saiu por esse mundo cheio de mata atrás do sonho dele. Mas o tal tinha um pobrema. Cum´ele num sabia lê as coisa do mundo, o pobre olhava um negócio e via outro!...
- Conta, pai! Lê! Diz cumé que foi!
            E o velho Sancho foi criando sua própria narrativa. No passar das páginas, no ir dos indecifráveis parágrafos, foi construindo com a fala a aventura do Menino Que Sonha. Descreveu em detalhes a curiosa passagem na qual o protagonista confundiu um monte de samaumeiras com um exército de Matintas Pereras gigantes. Pensando que estava cercado pelas enormes rivais, o aventureiro preparou-se para guerrear. O clarão do sol, porém, soletrou a verdade nos olhos do menino. Desfeita a confusão, ele seguiu...
            Maravilhado, ouvinte atento, Miguel concentrava o olhar nas sombras que a vela projetava pelas paredes em redor. Via nelas cada cena que seu pai ia relatando.
            O caboclo contava. Motivado pelo deslumbramento de seu curumim, contava. Contou que, certa altura, o herói do livro iludiu-se com um tronco solto a boiar pela correnteza de um rio. Pôs no juízo que havia encontrado o Boto!
- E o que sucedeu, pai? Lê! Anda, lê!...
            Rindo com ternura, o velho Sancho “leu” que o vento da magia soprou o engano para longe dos olhos do pequeno viajante. E assim, fantástica, a contação prosseguiu. Guiado pelas vistas da imaginação, o personagem principal foi vivendo sua saga. Esbarrando na ilusão de encontrar o Mapinguari, a Boiúna e o Curupira, o herói foi filtrando com a alma os encantos do misterioso mundo que o cercava.
            Atingida a última página do livro, o pai de Miguel criou o inspirado arremate:
- No final, fio, o menino descobriu que, pra lê as coisa do mundo, nós tem que usá o enxergador do coração. Lê é passá os olho nas letra e falá em voz alta o que elas diz. Mas tem muita belezura que só os sentimento da gente dá conta de lê... – Fechou o fascículo com altivez – Pronto. Tá contado o causo!
            As sombras nas paredes pareceram aplaudir. Miguel suspirou de contentamento.
- Que livro bonito, né, pai?
            Quem opinou, no entanto, não foi Sancho. Antes que o velho caboclo pudesse dizer qualquer frase, uma voz – a mesma voz masculina que o ribeirinho ouvira no início de sua narração – manifestou-se:
- Que linda maneira de ler o meu livro...
            Sancho e Miguel assustaram-se ao descobrir que à porta da tapera encontrava-se um intrigante cavaleiro de idade avançada. Trazendo sobre o mirrado corpo, uma desgastada armadura, o recém-chegado completou:
- É como eu já havia dito: só o amor paterno sabe ler e explicar qualquer magia!...
            Num pinote, Miguel ergueu-se e esclareceu:
- Foi esse o moço que deu o livro, pai! Foi ele.. – Tomando para si a publicação, o garoto correu até a porta e entregou-a ao estranho – Nós agradece, viu! Meu pai leu tudinho, tudinho pra mim. Uma formosura de história!
            O cavaleiro sorriu timidamente. Sancho baixou a cabeça, encabulado. O olhar atado ao frágil visitante, Miguel perguntou:
- Cumé o nome do moço?
            Outro riso tímido e a resposta:
- Já me chamaram de muita coisa mundo afora. Já me batizaram de louco, de bobo, de figura triste. Mas hoje, aqui nesse recinto tão nobre... Hoje, diante de um verdadeiro fidalgo das ilhas... – Lançou um comovido olhar a Sancho. O caboclo vexou-se – Diante de um Pequeno Príncipe ribeirinho – Redirecionou o olhar a Miguel. O rapazinho se encheu de pavulagem – Hoje eu descobri que fui apenas um menino que sonhava. Doravante quero ser conhecido simplesmente como... Dom Menino!...
            Sorrisos nos rostos de todos. Atmosfera de arrebatamento mútuo.
            Então, o enigmático mais uma vez se impôs. Uma nova rajada de vento invadiu a tapera e a vela se apagou. Perdidos no breu, Miguel e Sancho pelejaram para encontrar fósforos que trouxessem a luz de volta. Em algum ponto da escuridão exterior, um relinchado e os galopes de um cavalo a partir. Novamente iluminada pela delicadeza de uma só chama, a tapera se revelou ambiente onde apenas se via o caboclo artesão e seu filho:
- Égua! O moço sumiu, pai!...– Um arfado longo – Pena. Ele levô o livro! Ia pedi pro senhô repeti as leitura!...
            Afagando os ombros de seu herdeiro, Sancho contemporizou:
- Tem mal não, fio. Quando nós lê um livro ele fica dentro de nós...
            Súbito, o surpreendente resolveu regressar. Num místico rompante, a chama da vela cintilou vivamente revelando sobre a mesa um novo livro. Exultante, Miguel correu no rumo do achado. Ele não sabia, mas na capa estava escrito o título “Dom Casmurro”.
- Pai, vô confessá uma coisa pro senhô: essa noite eu aprendi a lê também. Juro que aprendi. Senta aqui, senta, pai... Deixa eu lê esse livro pro senhô... Sabe como ele chama? O nome desse livro é “O Causo do Homi Que Ensinô o Fio A Voá”... Senta aqui, pai... Senta e escuta...

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