sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

LADY B - Terceira Parte


            Tudo não deveu nada aos mais espalhafatosos filmes americanos! Foi simplesmente cinematográfica a seqüência de Lady saindo do banco, levando Evaldo pelo cangote, o saco de dinheiro e a pistola em punho. A polícia atirando, o assaltante também. Toda a imprensa macapaense reportando corajosamente o episódio. Uma multidão de curiosos aplaudindo e assobiando. Num lance espetacular, o travesti conseguiu render um dos policiais e lhe roubou a viatura! O refém sendo jogado para dentro do carro com o produto do roubo. Tiros, tiros, tiros. Lady ao volante, o automóvel furando o cerco dos tiras, manobrando perigosamente por entre a excitada platéia. Tiros, tiros, tiros. Os pneus cantando, queimando o asfalto. Tiros, tiros, tiros. E a fenomenal debandada!

            O que se seguiu a isso foi uma perseguição ainda mais hollywoodiana! Pelas ruas da capital amapaense, a viatura roubada fazendo zigue-zagues surreais, invadindo calçadas, tirando fino de postes, pedestres, bancas de revista. Os carros da polícia e suas sirenes escandalosas! Plantão do Jornal Nacional ao vivo para todo o país com as espetaculares imagens registradas de helicóptero. Uma super produção! Guiando toda aquela sandice, Lady gargalhava, divertia-se como nunca. Preso a tão imensa desdita, agarrado ao saco de cédulas surrupiadas, Evaldo mal respirava de tanto frenesi.

            Uma esquina, mais uma. A freada brusca em frente a Igreja de São José. Protagonizando outra seqüência arriscadíssima, o travesti abandona o carro e arrasta  refém e dinheiro consigo. As viaturas policiais param em torno. Tensão. Cano do revólver na têmpora de seu seqüestrado, Lady ameaça disparar. É a deixa para que não se faça nada. O delegado grita para o assaltante desistir. O criminoso ri de modo debochado. Nova multidão de curiosos. Suspense absoluto. Senhora da situação, Lady arrasta Evaldo para dentro da igreja e, assim, ambos se trancam no templo.

            Evaldo arriou-se, ofegante, num dos bancos da igreja e Lady, adonada do saco com o roubo, correu rumo ao altar. Antes de concretizar o plano do assalto ao banco, passara meses freqüentando a Casa de Deus – “desmontada”, evidentemente – a fim de descobrir um insuspeito esconderijo onde pudesse camuflar a grana, no caso de alguma emergência. Por fim, descobrira um maravilhoso vão no piso atrás de uma das reentrâncias do altar. Como a emergência se apresentara, era hora de ocultar a fortuna que conquistara para seu amado e doce Adão.

            Escondido o dinheiro, reconduziu-se a Evaldo. Tirando do decote uma carta dobrada em quatro, entregou-a ao raptado.

- Toma!... Guarda isso contigo!... – Sempre obediente, Evaldo tomou o envelope para si e enfiou-o no bolso da calça. Lady prosseguiu em suas instruções: – Caso aconteça alguma coisa comigo, tu vais até o endereço que está nesta carta e revelarás a Adão que ele tem de vir buscar o dinheiro aqui – Agarrando o outro pelos colarinhos, bradou: – Entendeste?!... – O nervoso assentimento do garoto. Um tapinha cafajeste em seu rosto – Isso!... Bom menino!... Agora, vai!... Tás livre! Te manda daqui!...

            Empurrado no rumo da porta com violência, Evaldo cambaleou e deteve-se.
- Eu não vou embora!...

            O choque do travesti:

- Como é que é?

- É isso mesmo!... Eu não vou embora!... Quero ficar contigo até o fim!...

            Pelo megafone, o delegado, lá fora, aconselhava a rendição do criminoso. “Nós não vamos machucar você!... Saia daí com calma!... Vamos tratá-lo super bem!...”
            A gargalhada histriônica de Lady.

- Essa é boa!... Então, queres ficar comigo até o fim?!

            O queixo erguido, Evaldo foi incisivo:

- Sim!... Quero ser teu parceiro até o último momento!

            Não teve como ser diferente. Diante daquele inusitado, o travesti desarmou-se de toda sua ironia e agressividade. Ombros decaídos, pistola por soltar-se dos dedos, caminhou de volta ao altar e estagnou-se em frente às estátuas de santos. As íris marejadas, correu a vista pelas imagens sacras...

- Tu sabias que, segundo a crença do povo – Falava para Evaldo, mas permanecia mirando o altar –, cobras gigantes dormem embaixo de certas igrejas?...

            Aproximando-se por trás, o outro indagou quase num sussurro:

- Tu disseste no banco que teu nome é Lady B.... Lady Boiúna!... Por que, hein?!

            E a imensidão de músculos negros e badulaques coloridos ajoelhou-se ante o sagrado. Um longo e misterioso suspiro...

- Adão... O meu amado Adão adora lendas. As amazônicas, conhece todas. Todas!... – um riso dolorido, sumidiço – Foi ele quem me batizou... Segundo o meu amor, a Boiúna é forte, destemida... Ele sempre achou que eu era tudo isso!...– O olhar no rumo dos santos. Uma lágrima no rumo do decote. Queixo erguido – Eu não tenho um pingo de vergonha do que sou!... Nem um pingo!...

            A mão de Evaldo pousando no ombro que Lady reaprumava. A fibra do travesti:
-  Deus ama todos os mitos que cria. Somos todos lendas divinas... Lendas de carne, suor e prazer!... E a nossa divindade consiste em nos darmos na cama que quisermos escolher como altar... Sem culpa nem medo!... – Em outra de suas mudanças repentinas de postura, o assaltante pôs-se em pé com enorme ginga e sacou de um bolso do vestido um espelhinho e um batom. Retocando a maquiagem com sensualidade fatal, concluiu jocosamente: –  Deus é a gênese poética dos travestis. Sabe por que? Porque Ele próprio não é homem nem mulher!...

            Súbito, o zunido de uma bala atravessando a igreja e alvejando o altar. O batom e o espelhinho indo ao chão. Pegos de surpresa pela furiosa e inesperada ação da polícia, Evaldo e Lady agacharam-se para não serem atingidos pelos disparos que começaram a invadir o templo não se sabia como nem de onde. Lá fora, as ordens já menos complacentes do delegado: “Escuta aqui sujeito, já chega!... Você tem dois minutos para soltar o refém e sair daí!... Saia com as mãos para cima e acabe logo com isso!...”

            Cúmplices, raptor e raptado ataram os olhares.

- Tens certeza de que queres vir comigo, garoto?

            O riso ousado de Evaldo:

- Total e irrestrita certeza.

- Então... – A arma se reengatilhando nas mãos de Lady. Mãos firmes e com unhas muito bem cuticuladas – Prepare-se para mais uma emocionante parte dessa aventura, rapazinho!...

            Assim, os comparsas iniciaram sua fuga da igreja. Não sem antes Evaldo apanhar o espelhinho e o batom do chão para guardá-los no bolso, junto à carta que recebera havia pouco. E uma nova escapada rocambolesca se deu. O rapaz fingindo-se dominado por Lady, pedindo calma ao saírem do templo. A polícia baixando as armas. Os dois se apossando de uma moto milagrosamente estacionada por ali e fugindo em alta velocidade. O público vibrando e vibrando. Os policiais, esbaforidos, se lançando em uma nova perseguição fabulosa pelas ruas de Macapá!...

Continua...

Conto inspirado na lenda da Boiúna.

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