sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

LADY B - Capítulo Final

            Parecia encantaria, mas os saltos finíssimos de Lady não engatavam minimamente nas fendas das madeiras. O travesti e Evaldo corriam por um trapiche que se lançava às águas que banhavam Macapá. Uma lancha ali esquecida era o alvo da dupla de bandoleiros. Corriam e corriam. Retardatária, a polícia ainda vinha longe, dava-lhes mais chances de fuga. Lady gargalhava. Seu inusitado comparsa ria nervosamente.

            Jogaram-se na embarcação. Frenesi. Um saboroso frenesi. Dificuldade para dar partida. Escandalosa tensão. Por fim, o motor concorda em se ligar e o veículo se vai, rasgando o rio, abrindo caminho no pique da impetuosidade.

            O vento no rosto de Lady. Uma súbita, estranha e indisfarçavel tristeza:

- Tem horas na vida que a gente parece sentir as últimas horas da vida...

            Guiando a lancha, Evaldo sentiu um calafrio:

- Credo!... Coisa mais mórbida de se dizer – Os olhos atados na furiosa melancolia que capturara o rosto do outro – A gente já conseguiu o mais difícil!... A gente se livrou da polícia!...

            O travesti, um olhar perdido, um tom de voz seco:

- Não esqueça do que foi combinado... Procure Adão... Vá até o endereço que está na carta que lhe dei... Não se esqueça!... Diga-lhe que vou amá-lo para sempre!...

- Ora, essa!... Tu própria vais dizer isso pra ele!

            De repente, o estranho pedido de Lady:

- Pare a lancha.

- O que?

            Um quase brado:

- Pare a lancha!

            Ordem atendida. O colosso de músculos negros se pôs em pé no meio da embarcação. A inusitada cena. Equilibrando o prumo no barco nos saltos, Lady e sua berrante indumentária. O travesti abriu os braços, fechou os olhos e repetiu a estranha frase num murmúrio:

- Tem horas na vida que a gente parece sentir as últimas horas da vida...

            O tiro. Certeiro, surpreendente, cruel. Vindo de um quando jamais se pensava, um violento tiro tomou para si o peito de Lady B.

O choque de Evaldo. O que havia acontecido? Como aquilo era possível?...

Só então, seu olhar correu em volta e viu as três escunas da polícia que haviam aparecido do nada para cercar a lancha. Numa das embarcações, o delegado, arma em punho ainda fumaçando, riso de vitória nos lábios.

Agora vidrado de choro, redirecionou o olhar a inesquecível figura de Lady B. O jorro de sangue quente descendo pela volúpia de silicone, manchando com um penoso adeus todo o colorido das bijuterias. Com os braços ainda abertos, o travesti negro tombou lentamente e caiu de costas nas águas do rio. Caiu nas águas para sumir e nunca mais ser visto...

           Passada toda essa tresloucada aventura, estamos de volta ao ponto em que Evaldo se encontra diante de um barraco de madeira, na periferia de Macapá. Era o endereço que a carta deixada por Lady indicava. Tinha a correspondência nas mãos e um intenso baticum no peito. Bateu, por fim, à porta do casebre e, para sua surpresa, quem atendeu foi uma mulher.

- Pois não?...

            O desconcerto de Evaldo:

- É... Eu... Bem, devo ter me confundido...

- Tem alguma coisa a ver com o Hermes?

- Hermes? Não, não...

            Um delicado riso nos lábios da moça:

- A Lady. Tem alguma coisa a ver com a Lady?

            O rapaz cada vez mais confuso:

- Quer dizer que conhecias a Lady?

- Sim. Claro que sim. O verdadeiro nome dele era Hermes – Então, veio a revelação bombástica: - Fomos casados. Eu fui esposa dele.

            Evaldo teve a impressão de ouvir em algum lugar a sarcástica gargalhada do travesti. Mera impressão? Não conseguiu dizer nada. Não conseguiu expressar qualquer reação...

            Coube a mulher prosseguir com aquela inusitada conversa. Estendendo a mão ao visitante, apresentou-se:

- Muito prazer!... Meu nome é Gaya.

            Apenas após o cumprimento, Evaldo teve condições de cumprir sua missão:

- Bem, eu estou vindo aqui trazer uma carta. Uma carta para...

- Para o Adão?

            Aquilo estava cada vez mais despropositado:

- Sim... É uma carta para o Adão.

            Sempre sorrindo com ternura, Gaya afastou-se levemente e fez com que a porta do barraco resvalasse devagar. Assim, aos olhos de Evaldo surgiu a figura de um menino. Um garoto sentado no chão do casebre, divertindo-se com brinquedos de miriti com o formato de cobrinhas.

            E Gaya explicou tudo:

- Esse é Adão. Meu filho e filho do Hermes... O amor da vida do Hermes... Criatura pela qual ele era capaz de fazer qualquer coisa. Matar, roubar... Qualquer coisa!...

            A gargalhada de Lady B. Sim, Evaldo ouviu a gargalhada de Lady B. em seu ouvido e refestelou-se com isso. Entregou a carta a Gaya e se foi. Estava cumprida sua promessa. O dinheiro seria achado e usado por mãe e filho como bem quisessem. Foi-se um Evaldo mudado para sempre. Transformado como nunca. Foi-se para outra vida. Para viver finalmente tudo o que tinha a viver. Foi-se... Descobriu um dia que ainda preservava consigo o batom e o espelho de Lady. Relíquias que guardara após a fuga da igreja. Passou o batom nos lábios e mirou-se no espelho. Havia mudado para sempre. Calçou um sapato de salto finíssimo e pôs no corpo um vestidinho azul celeste bem provocante. Estava mudado como nunca. Alongou os cabelos, pintou as unhas e foi-se para as ruas. Estava mudado como jamais. Numa tarde qualquer, alguém lhe lançou uma ofensa, quis lhe impor um desrespeito. Não permitiu. Revidou. Ergueu os ombros e bradou:

- De hoje em diante, ninguém nunca mais vai me humilhar!... Ninguém!... Ou eu não me chamo Lady Eva!...

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