sábado, 11 de dezembro de 2010

É QUE PROSTITUTAS NÃO BEIJAM NA BOCA

Entre o criado-mudo e a porta, luz de lua e reflexos oscilantes do letreiro de neon. Mistura de brilhos lançada pela janela, ao fundo.
            Lentamente, o roupão escorregou e o corpo de Madalena revelou-se nu. Seios de mulher sofrida, um sexo farto e sempre acolhedor.
Ainda que diante de tudo aquilo, sentado à cama, sob nesgas de sombra, o homem fixou seu desolado olhar somente nos lábios densos da prostituta...
E ela veio ao seu encontro num andar moroso, pleno de uma sensualidade forçada e até patética. Ela veio, imperiosa, entediada. Veio e estagnou-se em frente ao cliente.
O homem ergueu-se. Os lábios densos que fitava. Umedeceu os seus próprios. Ergueu-se apenas para se lançar sobre aquela boca de mulher da vida. Queria beijá-la. Queria. Precisava.
            Pondo o antebraço diante do corpo, Madalena bloqueou o avanço do outro.
            Ela:
- O que é isso?!...
            Ele:
- Quero beijá-la... É só por esse motivo que estou aqui. Quero beijar-lhe a boca.
- O que?!...
- Nada mais me interessa... Quero só um beijo.
            A mulher recuou, aviltada.
- Escuta aqui, meu amigo, eu sou uma profissional. E, caso você não saiba, nós fazemos tudo... Tudo!... Menos beijar na boca.
- E por que?!...
- Porque não existe nada mais íntimo do que isso!... Nada!... Só a quem amamos, beijamos na boca.
            O homem parecia aflito.
- Você não entende?... Isto é muito importante para mim!... Vim até você apenas por esta razão!... – baixou a cabeça, engoliu em seco, soergueu o rosto – É que eu nunca... Nunca beijei uma boca.
- Você... nunca?!... – um riso nervoso – Ah, conta outra!...
            O indeciso reflexo de neon fez ficar lilás a lágrima que rolou pela face do homem.
- Eu nunca beijei uma mulher na boca. E tenho pouco tempo para realizar esse desejo. Amanhã, eu vou me... Escute, não posso deixar este mundo para trás sem experimentar isso.Você não entende?... Tenho de saber o que é um beijo na boca, hoje! Amanhã, esta vida não mais me existirá...
            Ali, vestida somente pelo luar, entre o criado-mudo e a porta, ali, Madalena desconcertou-se, estremeceu. Era só o que lhe faltava! Um suicida!... O homem lhe dizia que simplesmente se mataria no dia seguinte, todavia, hoje, precisava beijá-la na boca!... Ali, com pele de luz lunar, Madalena fitou seu cliente de modo desolado. Algo em seu peito doeu.
            A súplica do coitado:
- Por favor... deixe-me saber o que é isto que eu nunca soube... antes que nunca mais possa sabê-lo!...
            Então, Madalena decidiu se prostituir de fato. Com extremo cuidado, tomou entre as mãos o rosto de seu cliente. Uniu o corpo despido ao dele, trêmulo. Fechou os olhos e levou seus lábios vividos ao encontro daqueles, tão virgens.
O beijo. Sim, o beijo. Arabesco de línguas, alquimia de hálitos, salivas que se misturam e se decantam, que se condensam e se destilam. Úmido atar de sopros vitais. O beijo. Boca trancada em boca, abrindo almas.
            A prostituta afastou-se, de súbito. O semblante fingindo frieza. O íntimo remexido...
- Se era isto... está feito! Agora, vá!... Vá de uma vez para sua morte... E não pense em pagamento!... Por beijos na boca nunca se paga!... Vá!... Suma da minha frente!...
            O homem, um riso. Antes de ir, beijou a mão de sua mestra...
- Este que você está vendo há de morrer tranqüilo. – Disse e se foi.
            E, depois que tudo aquilo era ido, Madalena vestiu o roupão, deitou-se na cama e se afogou numa estranha agonia. Por Deus, simplesmente deixara aquele homem partir para o suicídio. Nada fizera para tentar demovê-lo de tal idéia. Apenas... tão apenas... beijara-o. Sim, beijara-o e o deixara partir. Aquele beijo na boca... Podia, ao menos ter conversado com o infeliz. Deixara-o partir...
Era uma pecadora! Não porque vendia sexo, não porque prostituíra a boca, beijando um estranho. Mas por haver permitido que um fraco se entregasse à morte. Era uma pecadora!...
Dias se passaram e Madalena naquela angústia. O suicida que deixara partir. Fora omissa, pecadora...
Dias se passaram... Agonia. Perdão. Precisava pedir perdão a Deus! Dias. Passou dias se corroendo.
Já era noite alta quando Madalena invadiu a igreja de um bairro qualquer da cidade. Vestido preto, xale escuro sobre a cabeça, caiu de joelhos ante o altar. O pesado remorso fez com que chorasse!.
A voz do pároco surgiu atrás de si:
- O que tens, filha?... O que te faz vir aqui nesse estado?
Cabisbaixa, a prostituta virou-se na direção do padre. Não quis encará-lo. Tomou-lhe a mão e beijou-a com sequioso respeito.
- Perdoe-me, padre!... Perdoe-me!... Deixei que um homem morresse...
O jovem pároco agachou-se e, com a ponta dos dedos, fez erguer o queixo de Madalena. Mesmo com o susto imenso que a outra tomou, ele disse mansamente:
- Aquele homem precisava morrer – Um riso doce – Tu apenas confirmaste a vida nova que eu queria para mim, mulher. Tens contigo... a fé da minha eterna gratidão...
Um beijo suave no rosto da prostituta. O conforto do abraço do padre.


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