sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

LADY B - Segunda Parte


          

            O algoz e a presa se entreolhando... A bala poderia ser disparada a qualquer momento e acabar com todos os momentos de Evaldo. Num redentor momento, todavia, um gemido feminino seqüestrou a atenção de Lady B.

            Caída a um canto, absolutamente ofegante, uma grávida. Uma dezena de pessoas prostradas pelo assoalho, prantos, temores.... Só aquela mulher, porém, pareceu despertar um algo no travesti. A extravagante criatura se esqueceu completamente da troca de olhares com nosso protagonista, abandonou de todo a empáfia e a brutalidade.

Evaldo finalmente se acocorou para acompanhar a lenta cena que se seguiu.

            Arma arriada, andar rebolativo e vagaroso, Lady B. foi-se até a gestante e se agachou a sua frente. Uma estranha emoção tomou conta das duas personagens. O travesti fez a mão pousar com suavidade sobre a voluptuosa barriga que denunciava tanta vida nova. O anel com formato de cobra sobre aquela gestação. A futura mãe pareceu sentir um profundo prazer com aquele toque.

            A enigmática pergunta do assaltante:

- São gêmeos, não são?...

            Indaiá, a mãe, respondeu num timbre quase orgástico:

- Sim... Uma menina e um menino...

            E a mão que estava sobre a barriga, com suas unhas pintadas de vermelho berrante, migraram até o rosto da grávida para um afago doce. Lágrimas rolaram pelos rostos de Indaiá e de Lady.

            Num súbito, o travesti se pôs outra vez em pé. No semblante, lá estava de regresso o ar intimidador. E a ordem que emitiu foi sibilante:

- Te levanta, mulher! Vai embora daqui, vai!... – A grávida hesitou – Anda, criatura! Levanta essa barrigão daí e toma o rumo da reta!... Caminha!

            Não foi preciso mais nenhuma frase. A gestante, mesmo com alguma dificuldade, ergueu-se, correu  para a porta giratória e se foi. Lá fora, o banco já estava cercado pela polícia, imprensa a postos, o circo dos curiosos.

            Lady B. ainda estava reaprumando definitivamente os ombros quando um outro evento inesperado se explicitou. O urro de um dos reféns ecoou pelo interior da agência:

- Eu não vou admitir ser assaltado por uma bicha como essa!...

            Com um riso irônico nos lábios, o travesti girou nos saltos procurando o inteligente autor do desacato. Achou-o acuado na parte central da agência. Um sujeito barrigudo, com seus quarenta e cinco anos, bigode farto, blusa aberta, peito cabeludo à mostra, a cara puro suor frio...

- Como é que é, tiozinho?

- Tiozinho uma pinóia, seu viado!

            Evaldo acompanhava tudo com absoluta excitação.

            O plec-plec dos saltos de Lady se aproximando do inconformado refém. A imensidão do travesti diante da postura diminuta do outro.

- Garotão corajoso, hein?!... Tem medo de morrer não, né?

            Mesmo nitidamente trêmulo, o homem resolveu continuar desafiador:

- Eu tenho é nojo de um tipinho como o teu. Era só o que me faltava! Eu, um mecânico que trabalha de sol a sol, um pai de família honrado, preso num banco por causa de um idiota que, além de fresco, ainda é pre...

            A intervenção entredentes do travesti:

- Lady B., meu bem!...Olha o respeito!... Me chame de Lady B.! Lady Boiúna! Mais perigosa do que a própria Cobra Negra dos rios!...

- Uma bichona!... Tá querendo dinheiro pra que, einh?... Pra comprar absorvente íntimo?

            A gargalhada do próprio travesti. Silêncio absoluto no interior do banco. O silêncio de Evaldo. A pseudo-pândega de Lady silenciando. O ódio nos olhos do assaltante. Ele em pé, gigantesco. O refém, encolhido rente ao piso.

A mira da pistola concentrou-se angustiantemente na testa do fulano.

- Eu quero dinheiro, meu senhor, quero sim. Mas é para cumprir uma promessa que fiz ao meu amor. O senhor sabe o que é ter um amor?... Alguma vez na vida já sentiu vontade de destruir o mundo apenas por amor a um ser humano?... – A respiração densa do agachado, o suor frio cada vez mais grosso – Fiz uma promessa ao meu amado Adão e vou cumprir nem que eu tenha que meter balas em cabeças cretinas como a sua!...

            Tensão plena e irrestrita. O tiro por sair, por sair... E o que acabou saindo foi uma nova gargalhada de Lady. Sempre surpreendente, o travesti limitou-se a levar as mãos aos quadris e sacudir os ombros com propositada afetação:

- Ah, meu bem, eu não vou gastar minha munição contigo, não. Mas não vou mesmo, docinho! Sabe por que? Por que cabeças como a tua já estão atravessadas pelas balas mais imundas que existem: a ignorância e o preconceito!...– E quando fazia menção de se afastar, tornou a se dirigir ao refém, reconduzindo-lhe a mira da pistola – Mas uma liçãozinha tu vais levar. Vai, sim!... Anda! Se arrasta até aqui!... – Com o cano do revólver, indicou o rumo dos sapatos que calçava. O altíssimo salto direito tamborilando o assoalho – É isso mesmo!... Vem cá!... Tu vais aprender a respeitar as bichonas!... Quero sentir um beijinho teu no meu pezinho, querido!... Bem carinhoso!...

            A transpiração caudalosa do humilhado. A fúria e o medo em seu rosto. A valentia tufada no peito, porém, teve de correr às léguas no que Lady reengatilhou a arma e deixou claro que dispararia em questão de segundos.

            Em questão de segundos e aos prantos, o poderoso pai de família curvou-se ante a “superioridade” do travesti e beijou-lhe demoradamente o pé.

            Numa rabissaca entediada, Lady empurrou o vencido para escanteio.

Empertigado, o assaltante decidiu mudar o ritmo de tudo aquilo. Ágil e vigoroso, esvaziou uma lixeira qualquer, tomou para si o saco preto do lixo e rumou aos caixas. Com a arma sempre friamente empunhada, obrigou os atendentes a jogar em seu coletador todo o dinheiro que tinham nos guichês. Saco empanturrado, voltou ao centro da agência e girou nos calcanhares. Precisava de um escudo humano para poder sair do banco... Quem? Quem? Quem?... Deparou-se com Evaldo em pé, esperando para ser escolhido.

- Tu mesmo, amiguinho! Vem comigo!... – O sutil riso de prazer do eleito – Vamos, rápido, vamos!

Com Evaldo preso numa chave de braço diante de si, Lady se preparou para um dos momentos mais delicados de sua ousada ação: a fuga. Antes de sair, entretanto, permitiu-se mais um lance de ironia. Tirou do saco de lixo um monte de dinheiro e arremessou-o na direção do mecânico que tentara constrangê-la.

E o recado que emitiu com total masculinidade foi simplesmente cruel:

- Toma aí, tiozinho. É pra tu comprar de volta um pouquinho de dignidade.

            Às gargalhadas, levando consigo um elétrico Evaldo, Lady B. lançou-se aos riscos que lhe esperavam lá fora...

Continua...
 
* Conto inspirado na lenda da Boiúna.

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