sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

LADY B - Primeira Parte


Conto da série MITOS NO ASFALTO, projeto que traz para a urbanidade figuras da mitologia amazônica.

           Bem, essa é uma daquelas histórias que usam o recurso nada original de mostrar primeiro parte do fim para depois voltar ao início. E a cena que temos dos momentos finais da trama é a de Evaldo diante de um barraco de madeira, na periferia de Macapá. Nas mãos do rapaz de vinte anos, a carta que prometera entregar a um certo alguém. Em seus ouvidos, o brado desesperado de Lady: “Eu tenho um amor, vocês estão me ouvindo?... Eu tenho um amor!... É por Adão que estou fazendo tudo isso!... Por Adão!...”. A respiração densa. O corpo cansado com o turbilhão de emoções que vivera. Finalmente conheceria o amante da criatura que, em um único dia, mudara sua vida para sempre. O amor da criatura que, por ser tão boiúna, fizera tantos preconceitos seus se afogar.

Agora, qual num risco de relâmpago, começamos
como de fato se deve começar. O real ponto de partida da nossa narrativa é a chegada de Evaldo ao banco, naquela abafada e sonolenta manhã macapaense. Agências bancárias, pensava ele com arrastada raiva, são uma irritante metáfora dos rios amazônicos: ambientes para o viver de várias cobras. As filas intermináveis –  circundantes, sinuosuas – traziam-lhe à memória a imagem das serpentes. E o desagrado por ter de se submeter àquelas filas lhe inundava a língua com um tal gosto de veneno. Mas era apenas um qualquer, dizia a si mesmo. E a vida de um qualquer se resume a ter de se deixar picar pelo tédio do conformismo.

 Num súbito, porém, o surpreendente decidiu dar um bote certeiro na monotonia dos que se encontravam naquela agência. Pelos dentes do estardalhaço, um inusitado incidente chamou a atenção de todos para a porta eletrônica do banco.

- Isso é preconceito, meu filho!... Preconceito! Crime – A voz de falcete, tom feminino criado pela vontade de ser feminino – Eu tenho o direito de entrar com os meus pertences, viu?! ...

            E o que se passava era isso: do lado de fora da agência, um travesti negro com quase 1,80 de altura. Figura absolutamente extravagante. Além da altura natural, sapatos com saltos finíssimos de dez centímetros. Maquiagem pra lá de forte, peruca ruiva, vestido justo azul celeste e todo o tipo de bijuterias. O motivo do alarido? O sistema de alarme da porta giratória estava impedindo a entrada do personagem com sua indefectível bolsa tiracolo pink.

- Eu não vou tolerar isso – Era possível ouvir a indignação da criatura mesmo para além do denso vidro da porta – Se vocês vierem com esse papo de me revistar, eu vou dar parte dessa pocilga por preconceito, eihn?!... Eu vou, eu vou!...

            Evaldo começou a se divertir com tudo aquilo. Os trejeitos ensandecidos do travesti. O desconcerto do segurança do banco que não sabia se fugia ou ficava em seu posto. O desespero do gerente a gesticular para que o segurança liberasse de qualquer jeito a entrada do exuberante cliente. O nosso protagonista precisou conter o riso. Divertia-lhe a patética comédia do cotidiano.

            O perrengue foi resolvido com o segurança recebendo a bolsinha pink por uma daquelas aberturas por onde se deixa celulares e chaves. O travesti entrou, triunfante, andar malemolente, no semblante um ar superior de “tá, meu bem?”. Com a bolsa novamente em seu poder, tomou para si um dos rabos de fila e sentenciou:

- Gentinha tola...

            Então, seu olhar e o de Evaldo se encontraram num deslizar. No fundo das retinas do travesti, uma estranha tensão, um medo secreto. Nas pupilas do outro, o congelar-se de um instigante detalhe: todas as bijuterias que o espalhafatoso recém chegado usava tinham a figura da cobra como inspiração. 

            Assim, Evaldo fixou-se no pesado anel de ouro com forma de serpente que o travesti mantinha na mão direita. E viu quando essa mão se levou vagarosamente ao zíper da bolsinha pink. Viu quando invadiu com silêncio a tiracolo. Viu quando tirou do interior da bolsa uma pequena pistola prateada...

            Arma em punho, postura inimaginavelmente belicosa, o travesti anunciou num tom viril e explosivo:

- Isso é um assalto, porra!... Todo mundo quieto... Ninguém me invente de fazer nenhum movimento besta – a mira da arma girando em torno do ambiente – Se vocês forem espertos e bonzinhos, isso vai acabar rápido e numa legal...

            As filas-cobra não eram mais filas-cobras, e sim um ridículo amontoado de pavor pelo chão. O burburinho, os gritinhos de pânico, os choros que já se faziam ouvir. Todos pelo piso, rendidos, entregues.

            O travesti girando em seu próprio eixo sobre os saltos altos finíssimos. A pistola engatilhada e firmemente empunhada.

Brados trovejantes:

- Eu tenho um amor, vocês estão me ouvindo?... Eu tenho um amor!... E é por Adão que estou fazendo tudo isso!... Por Adão!...

            Todos na agência jogados pelo piso. Todos. Menos Evaldo.

            O giro do travesti parou na direção do nosso protagonista. A mira se fechou em seu peito. Seu olhar e o do travesti outra vez se ataram.

- Qualé, cara?... Vai querer me desafiar, é isso?... – Fragilidade e agressividade juntas no falar – Te joga no chão, cacete, anda!... Te joga!

            Alguma coisa, porém, fez Evaldo se manter impassível. Talvez a frase. A incongruente frase: “É por amor a Adão que estou fazendo isso...”. Ergueu o queixo e sustentou com ousadia o intimidativo encarar de seu inquisidor.

            A fúria e a invisível delicadeza do travesti:

- Anda, sujeitinho!... Mete essa cara no chão, se não eu vou atirar em ti! Ou eu não me chamo Lady B.!

Continua...
 
* Conto inspirado na lenda da Boiúna.

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