domingo, 5 de dezembro de 2010

FOI PRECISO QUE JOANA DESCESSE AO PORÃO...

Conto do livro O SUMÁRIO DA METÁFORA

            Joana ensaiava entrar na casa. Tentava, bem que tentava. Mas era tão difícil. No semblante, toda a tradução de como se sentia. Oca. Sim, tinha-se oca, absolutamente vazia.
Como nada havia que os impedisse, Paula e Michel invadiram o lugar com algazarra, ansiosos pelo novo. Para os dois, aquele prédio não passava de um hoje qualquer. Já para Joana...
            Lá, presa à porta, foi fria:
- Ei, ei... vocês!... Não quero saber de bagunça. Peguem suas coisas e subam. Os quartos ficam lá em cima.
            Questionar seria inútil. Paula e Michel obedeceram.
            Joana entrou, por fim – ou a casa a teria engolido?!...
Correu a vista pelos espaços em volta... Ódio, repulsa... Os ambientes em volta: aquelas salas, a cozinha, o corredor que levava ao porão...
O porão...
Tanto que fugira daquela maldita residência. Brigas. Revolta. Quinze anos e já estava longe da família, perdida no mundo. Loucuras. Outras cidades. Loucuras. Outros Estados. Loucuras. Aquela casa de novo?!... Viver é dar voltas em torno de um grande nada, concluía, exausta. O esforço de uma vida inteira para se ver livre daquele lugar resumia-se agora a ter de voltar. Voltar: verbo de conjugação cretina...
O porão...
            Foi logo no final de seu primeiro dia de retorno que Joana reuniu forças e desceu ao porão. Tinha de fazer aquilo. Por que? Deus o saberia. Apenas precisava fazê-lo.
            Aquela escadinha em direção à penumbra. Paredes mais próximas. Falta de senso direcional. Vertigens. O coração ameaçando rasgar-se...
            O porão fez-se ambiente em torno de Joana qual uma garganta voraz. Uma fome tão antiga. Tantos anos tinham passado, corrido, rasgado o existir...
            Escuro. Escuro profundo. Profunda estranheza. O incômodo de estar com os olhos tão abertos e nada ver.
            E o começo de tudo, na verdade, foi muito rápido. Houve tempo somente para que Joana tomasse fôlego...
            Doce, uma voz nasceu do meio das sombras:
 - Por favor, não se assuste...
            Joana e um grito seco.
            Ora, um “Por favor, não se assuste” vindo da escuridão era, no mínimo, ironia!
- Que é isso?! Quem está ai?
- Não... Não tenha medo... Por favor, não tenha medo...
            Escuro. Escuro profundo. Uma mulher! Havia uma mulher ali dentro!...
            Belicosa, Joana tateou o ar. Onde estavam as paredes?... Um móvel?... Um objeto com que pudesse se defender?!...
- Quem está aí?... Eu...
- Acalme-se! Posso explicar! Acalme-se!... Quando a vi chegar, hoje de manhã, fiquei muito feliz...
            Joana tentava deslocar-se pelo recinto, mas... aquela escuridão!... Escuro profundo!...
- Eu vou chamar a polícia!... Vou chamar a polícia, einh?!...
- Escute!...
- Eu não tenho que escutar coisa alguma!... Quem é você, afinal de contas?...
- Joana, pare!... Pare e ouça!...
            O eco: “Joana, pare!... Joana!... pare!... Joana... Joana... Joana!...”
            A dona da casa fremiu dos pés a cabeça. A voz, um fio:
- Como sabe meu nome?...
            Um risinho maroto perdido por entre as trevas...
- Sei porque a conheço muito bem... Ou, pelo menos, conhecia!... É que faz tanto tempo!...
            Joana, um mal-estar na alma. A compreensível sensação de que havia algo de muito insondável naquela situação.        
Passos incertos, conseguiu retornar a escada. Ao pisar no primeiro degrau, porém, entreviu a porta lá em cima fechar-se por mera e total mágica. O susto lhe foi tal, que se desequilibrou e caiu.
Sem a menor cerimônia, pôs-se a gritar:
- Paula...! Michel...!
            E a voz de mulher ressurgiu com inquietante brandura:
- Não há o que temer, Joana... As coisas estão lhe parecendo esquisitas, eu sei... Mas nós precisamos conversar e, depois disso, tudo será melhor.
- Paula!... Michel!...
- Não adianta chamar por seus filhos... Eles não vão escutar!
            Movimentos à esquerda, movimentos à direita. Em meio a seu pânico, Joana podia notar que a desconhecida se mexia pelos espaços escuros. E, Deus do céu, por mais que arregalasse os olhos, por mais que se esforçasse, não conseguia vê-la nitidamente.
- Socorro!... – respiração pesada – Alguém me...
A voz – tão familiar, tão enigmática. – , de cândida, tornou-se cortante:
- Cale-se!... – e, vindo sabe-se lá de onde, um bofetão cauterizou o rosto de Joana.
            Para nossa amiga, esgotada pelo pavor, restou o nada original consolo do desmaio.

*                                *                                *

- Sente-se melhor? – a indagação veio das sombras.
            O que? Hã... ? O porão...!  Pesadelo... Tivera um pesadelo? O que?!...
            Joana ressuscitou aos poucos. Não teve ânimo imediato para deixar fluir seu desespero. Descobriu-se sentada sobre uma espécie de caixote. Circundando-a, um facho de luz que partia de algum ponto no teto...
            Retrucou, cansada:
- Sim...
             O vulto – ora num canto, ora noutro... – murmurou amavelmente:
- Que bom... Fico contente, minha amiga.
            Pesadelo... Estava tendo um pesadelo?... O que?... Hã?
            Mesmo sonolenta, Joana ensaiou alguma ira:
- Que maldita história de amiga é essa?... Quem é você, droga?!...
            E foi como se a estranha mulher se transformasse num vento quente a correr pelos entornos.
- Ah, esta raiva que você sente de tudo, não é, Joana?! Este furor...
- Olha, eu já perdi toda minha paciência com essa palhaçada! Ou você se mostra, ou eu...
- É triste ter ódio do mundo, minha cara, ódio da vida...
- E quem lhe deu o direito de julgar o meu jeito de ser, o meu...Ora, essa é muito boa!
- A vida pode ter sido cruel com você em algum momento... mas lhe deu, por exemplo, filhos maravilhosos...
- Filhos maravilhosos!... – um forjado desdém.
- Filhos excepcionais! Que te amam!
- Eles não ligam a mínima para mim!...
- Você é que despreza o amor que eles lhe oferecem, Joana!... Os dois não têm culpa de nada!
            Culpa? Do que aquela criatura estava falando? Será que...? Não!... Era impossível!...
            Que pesadelo mais real! Era real demais!
            Recobrando o bom senso, Joana resolveu voltar ao cerne da questão:
- Espera aí! Vamos esclarecer, de uma vez por todas, esta loucura! Estou presa num porão, discutindo minha vida com alguém que demonstra me conhecer profundamente e eu sequer consigo ver o rosto dessa pessoa!... Que brincadeira mais ridícula é essa?
            Tentou levantar-se e teve a impressão de que uma amarra a prendia àquele caixote...
            Um pesadelo... Aquilo só podia ser um pesadelo!...
- Nada disso é brincadeira, Joana! Nem um pesadelo!... Nada disso!...
            O pânico arranhando as costas de Joana... A voz quase não era mais voz:
- Por favor... saia das sombras. Deixe-me ver seu rosto.
- Ainda não é a hora...
            Raiva: 
- Vem cá, sua infeliz. Por acaso isto...
- Infeliz?! – um tom magoado – Vou dizer o que eu acho, minha cara. Já é chegado o tempo de curar este seu ódio interior. Eu sei de onde vem esta fúria em sua alma. A explicação para o eterno corte que você carrega está por aqui, não está, Joana?... A razão está aqui, perdida dentro dessa casa... Escondida por esses recintos... Enclausurada, há anos, neste porão!
            Joana estremeceu...
- Você não está se referindo a...? Não!... Não pode ser...
- É preciso exorcizar esse fantasma, minha amiga!...
            Um pranto doentio estraçalhou os olhos, os dizeres, o espírito de Joana.
- Cale-se! Não ouse...
- Se você tivesse pedido ajuda a seus pais, contado o que estava acontecendo...
            Joana transtornou-se:
- Meus pais?... Ora, não me faça rir!... Eles sabiam que eu estava sendo...
- Não diga tamanha besteira! Eles morreram  sem entender o motivo pelo qual você os odiava tanto!...
- Mentira! Eles sabiam muito bem!... Sabiam!
- Eles nunca suspeitaram! Pelo amor de Deus!... Edgar era irmão de seu pai! Seu tio, Joana!... Como eles podiam imaginar que aquele monstro lhe faria um mal tão imenso?!
            A dor do passado machucou tanto Joana, que seu corpo ardeu, curvou-se numa sofreguidão sem fim.
            O vulto – longe e perto, perto.. longe... – prosseguiu, com contraditória mansidão:
- Foi  aqui, não foi?... Por isso você teve que descer a este porão... Para ver se já era capaz de enfrentar, de afugentar estas lembranças tão dolorosas. Aquela tarde jamais se apagou na sua memória, não foi, Joana? O que lhe aconteceu, naquela tarde, não deixou nascer a mulher serena e doce que você deveria ter sido. Aquela violência transformou-a neste caco de si mesma, neste amargor enorme que perambula vida afora...
            Joana tapou os ouvidos e baixou a cabeça, enlouquecida de angústia. Não queria escutar. Não podia escutar!...
- Você está morta... A verdade é que você está morta... Perdida de si mesma... destruída...
- Chega!...
- Aqui, dentro destas paredes, ficou trancado tudo aquilo que seu âmago tinha de bom... Ao machucá-la, neste porão, Edgar arrancou de dentro de você algo que lhe era essencial:  você própria!...
- Por favor...
- Já é tempo de consertar tudo isso...
            A estranha se aproximou.
Então, cabisbaixa, Joana recebeu nos ombros um afago profundamente tépido. Depois... um beijo gentil magicou-lhe o rosto.
- Eu lhe garanto – reafirmou o vulto em seu ouvido, um sussurro reconfortante – que as coisas serão diferentes a partir de hoje...
            Sob o facho de luz, Joana e a estranha.
Ao reerguer a cabeça e contemplar, por fim, o semblante de sua interlocutora, o desnorteamento do mundo inteiro desabou sobre Joana. Estremeceu. Esmoreceu. Acordou de um pesadelo, afogou-se num sonho estapafúrdio...
            Diante de si, havia uma mulher trajando as mesmas roupas que trajava. Uma mulher que tinha a sua altura, os seus cabelos, os seus olhos, a sua boca... Uma mulher surpreendentemente idêntica a si própria. A não ser por uma extraordinária diferença: tratava-se de uma Joana bonita, leve, feliz...
            Ao mesmo tempo em que nada entendeu, tudo ficou claro em sua mente.
- Quer dizer que você sou...
            A outra riu:
- Eu sou a Joana que ficou presa, durante anos, aqui em baixo. Sou a verdadeira Joana!... Você é apenas o reflexo de um sofrimento meu.
            Uma estranha emoção.
- Como eu quis ter sido você...
- E como eu a esperei. Como aguardei seu retorno... Como ansiei por este dia...
- O que nós... – um misto de riso e lágrimas na fala. – O que faremos, agora?
- O que deve ser feito – um misto de lágrimas e riso. – Eu subo...e  você fica.
            A Joana amarga suspirou com pesar. Ou seria alívio?
- Faz sentido... Sempre tive a incomoda sensação de que o mundo lá de cima não me pertencia... Sim...  Aqui é o meu lugar.
- Enquanto que o meu verdadeiro mundo é o lá de cima.
Ambas fitaram-se com hipnótica cumplicidade e misteriosa paixão.
A Joana que passara tantos anos presa beijou as faces da outra, acariciou-lhe os cabelos, despediu-se e dirigiu-se à escada que levava à saída, que levava à liberdade, que levava à paz.
            E a Joana que ficou no porão regozijou-se, em paz consigo mesma, encantada com o breu que a cercava, encantada com aquela pesada solidão que, sorridente, lhe prometia fazer companhia até o final dos tempos...

2 comentários:

  1. Criatura divina! Quantas ideias em uma única e linda mente! Precisamos sempre de vc!!! Poeta-luz... beijos n'alma, amigo lindo.

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  2. É com prazer que leio seus contos.
    Estarei sempre por aqui.
    Obrigada. Beijos.

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