sábado, 18 de dezembro de 2010

TODA SAUDADE É VIL E VÃ

           

          No abrir-se da porta, aquela imagem quase monocromática. Um delgado vestido preto, trajando a palidez de uma flor-frágil. Toda a tradução da delicadeza cabível em uma dama.

           O carteiro, retido à soleira, teve de deter o impulso de parecer idiota. Fora simplesmente tomado de assalto por toda aquela beleza triste.           
            A jovem mulher falou mais com os olhos do que com os lábios. E disse apenas:
- Sim?...
            Não... Por alguns segundos, o carteiro esqueceu-se do que havia decorado para dizer. Sim, lembrou-se de repente.
- Bom dia, senhora. Sou do serviço de posta restante, dos correios – os olhos nos olhos vagos da outra – Bem, tivemos um problema de extravio com uma correspondência endereçada a esta residência. Agora, depois de um ano é que conseguimos detectar o erro. E por se tratar de um lapso tão grave, fui designado a entregar pessoalmente a carta... É que ela foi originalmente postada com a recomendação de urgência – os olhos nos olhos fugidios de sua interlocutora – Aqui está...
            E um envelope amarelado foi entregue a mulher vestida de preto.
            Não foram mãos que tomaram para si a carta. Foi puro vento. O olhar da dama-flor-frágil recaiu no sobrescrito e seu corpo inteiro estremeceu, quase a fazendo cair.
            A agilidade do carteiro, que rápido se adiantou para ampará-la, impediu uma queda.
- Leve-me para dentro – foi o pedido que ela fez com quem pede as últimas coisas da vida.
            O carteiro teve de carregá-la. Um feminino hálito quente dedilhando seu queixo, enquanto invadia aquela estranha casa escura, levando nos braços uma dama delgada e frágil. E tudo o levou a uma sala onde nada mais havia que uma cadeira de balanço e um pequeno banco, postos um em frente ao outro.
            Acomodou a anfitriã na primeira e tomou a liberdade de se instalar no segundo.
            Desfeita em seu assento, parecendo respirar só o suficiente para ainda existir, a mulher murmurou:
- Foi meu marido quem mandou essa carta. 
            O carteiro não teve tempo de falar nada. A outra continuou a sussurrar, encarando o pobre empregado dos correios com se lhe tivesse ódio:
- Eu o enterrei ontem, você entende?... Ele morreu e eu o enterrei ontem...
- Santo Deus... – um engolir em seco – Sinto muito. Acredite: sinto muito mesmo.
            Ela estendeu a correspondência de volta ao carteiro.
- Tome. Abra e leia para mim.
            “O que?!” Foi exatamente isso que, espantado, o outro exclamou:
- O que?
            O retorno veio entredentes, num tom explicitamente imperativo:
- Abra e leia para mim.
            Não foram mãos que reouveram a correspondência, mas puro tremor. O carteiro hesitou em abrir aquele envelope amarelado. A ordem, porém, ainda lhe ecoava nos ouvidos. Destruiu, por fim, o lacre, retirou um papel dobrado em quatro. Desdobrou-o devagar. Houve cheiro de sândalo em volta.
- Leia... – ciciou a viúva. Um tom surpreendentemente lascivo. Ela sabia perfeitamente o que estava para ser lido.
            E o carteiro iniciou uma leitura lenta:
- Minha amada flor-frágil... Continuo de onde parei na última carta. Continuo daquele ponto estranho e tão querido: meus desejos. Eu escreveria todas as cartas do tempo para discorrer sobre o desejo que escorre por mim...
            O carteiro parou de repente. Fez ar de quem achava aquilo tudo absurdo.
            E a viúva, quase num arfar:
- Leia...
            Ele prosseguiu:
- O desejo que escorre por mim feito suor. O que molha em mim este suor? Para onde escorrem essas gotas? Escorrerá por que reentrâncias minhas?... Tu sabes o que em mim se umedece. Tu sabes muito bem que suo por ti. Por causa dessa tua perturbadora e simples lembrança. De ti talhada nesse teu corpo. Tu sabes... Tu sabes que escrevo essa carta nu!
            Um grunhido da viúva, um olhar quente do carteiro.
- Deitado na cama, o travesseiro por apoio, escrevo nu. Flamejado pela visão que guardo nas retinas. A visão da tua nudez – o olhar correu pelo vestido preto, a sua frente. Tecido denso sobre um busto que subia e descia numa respiração desmedida. Tecido que subia até o pescoço de sua dona e descia ventre abaixo, cobrindo tudo miseravelmente – Tudo da tua nudez eu conheço. Mas é como se eu não conhecesse nada, pois quero sempre admirá-la qual fosse pela primeira vez. Admirar o que só eu sei.  Pois só de mim sabe o arrepio dos teus poros...
            A viúva levou a mão ao pescoço. Parecia sufocada. Os dedos desceram pelo colo, fugiram pelos seios, caíram pelo ventre, indo embora...
- Só de mim sabem os teus seios, o teu ventre, as tuas virilhas...- Um mirar que ia da carta à viúva num frenesi quente – Tenho saudade do teu mistério. Do mistério que só que rocei. Mas toda saudade é vil e vã. Pois não posso passar a língua na saudade. Não posso saciar minhas carnes com a saudade. Porque a saudade não me traz gozo.
            A viúva – uma lágrima resvalando pela face – ergueu-se de repente. Aproximou-se do carteiro, arrancou-lhe a carta das mãos e determinou:
- Quero que você mate a saudade que sente meu marido morto. 
            E num instante elétrico, ela se retirou avidamente do vestido preto que a prendia. Pôs-se nua. O carteiro, fremindo, também foi ágil em livrar-se de suas roupas. Assim, os dois se uniram. E o assoalho conheceu o peso e a ginga de seus corpos atados. Gemidos, fúria, desatino...
            Após o sexo, ainda no chão, desfeitos um sobre o outro... o casal ria de satisfação. E coube a mulher confessar:
- Você foi perfeito dessa vez.
            O homem, totalmente alquebrado, gostou de escutar aquilo:
- Fiz tudo direitinho?
            A outra mordeu os lábios antes de responder:
- Mais do que direitinho. Você parecia um autêntico carteiro assustado – gargalhadas – E eu? Convenci como viúva?
- Nossa! Até me deu vontade de morrer de verdade. Esse teu vestido preto faz a gente sentir vontade de cometer assassinato.
- Pervertido!
- Eu, pervertido? A idéia de tudo isso foi tua!
            Um ansioso beijo na boca. Sofreguidão unindo língua com língua
- Vamos embora – ordenou ela, regozijada com toda aquela loucura – os donos da casa podem chegar a qualquer momento!

PARA VER CURTA METRAGEM BASEADO NESTE CONTO, ACESSE:

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